quarta-feira, 28 de março de 2018

Chora, macaco imundo, eu vou matar um puto tricolor



   Em criança, eu era calado e retraído, certo da pobreza do meu mundo interior e da superioridade intelectual inconteste de meus maiores. Fechei-me em mim, num misto de timidez e de responsabilidade com as palavras.

   Então me diziam: fala, tchê, todos têm algo a dizer.

   Aos poucos, me solto. Observo. Percebo. Explicito.

   Assim não deves, me corrigiam. Assim não podes, me advertiam. Assim estragas tudo. Às vezes, recebia estimulantes tapinhas nas costas, quando expressava emoções da minha alma, melhor dizendo, da alma que queriam ver em mim. E eu correndo para atender o outro, ciente, ainda, de trafegar no patamar inferior da sabedoria.

   Mas a maturidade – essa relativa segurança no avaliar e no agir – um dia vem. E a dicotomia das almas vai se esfarelando. Virando pó as atitudes submissas. Observar e perceber não são coisas administráveis. São, quiçá, fatalidades circunstanciais neste universo tão vazio de substância. Explicitar conclusões é sempre uma escolha associada ao tipo de mundo que se quer construir, às conveniências que se quer preservar ou às inconveniências que se quer esconder.

   Num lamaçal onde predomina a hipocrisia, as verdades (sempre pessoais, é claro, como versões do percebido) são incômodas. O que queriam de mim, lá atrás – coisa que se repete agora -, era que absorvesse verdades exteriores. Mas a insinceridade sempre me incomodou.

   Retorno, então, à minha mudez infantil, que traduzo em solidão, eis que a palavra aprisionada converte-se em outros manifestos. Escapo do convívio com os desiguais para evitar suas reações agressivas ou dolorosas, como também eles se afastam de mim por desagrado, cassando-me a palavra, ao seu modo.

   Isolo-me. Desboto. Um pouco, morro. Mas morrer também não é a resposta desejável.

   Resta-me a escrita, então, como consolo. Aberta a página em branco - e dispostos para o trabalho os neurônios ávidos por comunicar-se -, vem de pronto, assustadora, a questão indigesta: a quem minhas reflexões irão ferir agora?

   O tempo é de embates.

   Tento chamar o lobo salivoso de peludinho faminto, a serpente venenosa de deslizante criatura, o juiz cretino de maligna excelência e o mentiroso contumaz de serzinho criativo.

   Descubro, no trajeto, que desses meneios todos vive, em parte, também a literatura.

   É óbvio que me estrepo. Todos estão fartos dessas curvas. Vamos andando em espirais cada vez mais estreitas, até desnudar-se, enfim, o lobo, a cobra, o pústula, a mentira.

   Enquanto isso, a tevê e a imprensa das famiglias vomitam números tortos ou precários, enxergando neles esperança infinita. A redenção. A propósito, as mesmas famiglias chamavam também de redentora a quartelada de 64, que nos legou centenas de desaparecidos, concentração de renda, subserviência internacional e falta de oportunidades.

   Enquanto isso, safados conhecidos, sem dizer qualquer palavra, assassinam covardemente a defensora dos direitos humanos Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes.

   Enquanto isso, o ministro mais empolado, entre volteios pernósticos, bababás e bobobós, explicita, insatisfeito – para não dizer puto da cara -, que o outro debatedor de capa preta é uma pessoa horrível, uma mistura de mal com o atraso e pitadas de psicopatia..

   Enquanto isso, o inescrupuloso cineasta José Padilha joga na boca de Lula as palavras de Romero Jucá, referindo-se à Lava-jato,  é preciso estancar a sangria - parte do diálogo com Sérgio Machado, o mais esclarecedor sobre as origens do golpe de 2016 (... a solução mais fácil era botar o Michel (...) num grande acordo nacional (...) com o STF, com tudo...) -, tentando, via ficção, fazer prosperar a verdade que lhe apetece. Um sinal inequívoco de que os golpistas estão acuados no canto do ringue, resistindo na estratégia parcialmente exitosa, mas já desmascarada, das fake news.

   A luta é pelo poder, mas as grandes batalhas serão sempre pelo discurso.

   Volto às minhas reflexões infanto-juvenis. Afinal, este país – como muitos de nós - ainda não soube tornar-se adulto. Há muitas nuances entre vermelhos e amarelos, como há muitas maneiras de nos expressarmos. O discurso é linguagem e o discurso mentiroso se esboroa com o tempo.

   No duro embate pela palavra precisa e certeira, não vejo opção mais simples do que voltarmos a encarar verdades incômodas de frente. Quais são elas? As que jorram dos fatos cotidianos e corroem o discurso dominante.

   Nossa vida piorou, sem sombra de dúvida. Nosso patrimônio comum está sendo roído e dilapidado.

   Corporativa e excludente, a Justiça optou pela política e a política – também povoada de famiglias - optou escancaradamente pelo particular.

   O trabalhador viu minguarem seus direitos, os salários perderam substância e o consumo reduzido prejudicou as empresas. Aumentou o desemprego, mas os privilégios para poucos se mantêm. As ruas estão cheias de mendigos, as crianças carentes voltaram a povoar os semáforos.

   Firma-se o poder paralelo das gangues. Milícias e esquadrões da morte estão novamente à solta. As polícias, mal instrumentadas e forjadas no arbítrio ou na autopreservação, defendem mais o partido no poder do que os interesses difusos da cidadania. Nossa guerra civil mata mais de sessenta mil cidadãos por ano, em sua maioria, jovens pretos. Todos já fomos roubados ou conhecemos pessoalmente uma vítima de violência.

   Perdeu recursos a educação pública e a escola privada reclama por subsídios que já teve um dia.

   Não são as necessidades coletivas que determinam o planejamento urbano ou econômico, mas o interesse das empreiteiras ou das corporações. O caos nos transportes prospera, o tempo gasto até o trabalho aumenta, as passagens encarecem.

   Insistindo na falácia de extinguir a fome do mundo, o latifúndio sufoca a diversidade natural e restringe o acesso a terra.

   Permeia o nosso cotidiano a violência contra a mulher e a fobia aos diferentes se escancara. O racismo, violento ou cordial, transborda de sua carapaça translúcida, mata, aprisiona e cria percalços, fomentando barreiras que nossa bagagem genética mestiça não avalizaria.

   O país reclama mais investimento em ética, cultura e democracia. Anteontem, ricos ignorantes, espumando bílis num estádio de futebol, mandaram nossa autoridade máxima tomar no fiofó. Ontem, remediados acéfalos fardados de azul mandaram chorar o macaco imundo, ou, vestindo vermelho, prometeram matar um puto tricolor. Hoje, atentam a pedradas e tiros contra o presidente Lula.

   A desigualdade, raiz de quase todos os problemas, só aumenta. A elite econômica acha legítimo querer enriquecer ainda mais, desconsiderando não haver crescimento da renda que permita tal proeza sem prejudicar alguém. As classes médias sonham com viagens à Disneylândia, Miami ou Cancún, enquanto vendem parte das férias para desfrutar o restante numa casinha modesta em Cidreira ou Curumim. Clamam por soluções as massas despossuídas, porque a fome dói mais do que a ganância.

   Somos governados por quadrilhas, o presidente está nu, na linha de tiro, e a corrupção segue firme e forte. Nosso processo eleitoral não assegura representatividade. Esquerda e direita, muitas vezes, são vizinhas no Leblon, nos Jardins, na Bela Vista ou no Montserrat.

   O ódio viceja por todos os lados.  As pedras  e  o  relho – e  agora  também  as  balas -, argumento final dos fascistoides, substituem o diálogo e a tolerância, enquanto os bem-intencionados se retraem. Num cenário desses, é cada dia mais difícil dormir tranquilo ou ficar calado.

   Crianças parvas que somos como sociedade, precisamos todos vencer a letargia e os medos e, cada vez mais, mostrar responsabilidade com as palavras.


                                                                    - Miguel da Costa Franco -

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