Lauro abriu a janela e constatou com os
olhos o que o telhado de zinco já advertia: chovia forte outra vez. O arroio,
portanto, subiria mais.
Durante a noite que Lauro havia passado
empoleirado no guarda-roupa, a água, dentro do barraco, tinha crescido o
suficiente para cobrir o motor da geladeira, que ele comprara em vinte e quatro
prestações numa loja da Avenida Cavalhada. Lá se ia o seu único tesouro. Após
sete anos de batalha, o pouco que havia conseguido acumular tinha afundado,
agora, nas águas fedorentas do riacho. Somente a sua marmita e um par de
canecas de plástico boiavam, perto da porta, em meio a paus, folhas e restos:
uma montoeira de lixo.
Quinze dias de chuva ininterrupta,
anunciava o radinho de pilhas, seu fiel companheiro na parte de cima do armário,
que, por sua vez, havia se transformado em ilha de esperança dentro da própria
casa. Caiu a chuva de dois meses, acumulada em apenas duas semanas, dizia o
locutor.
Lauro havia acompanhado o riacho subir pelas
barrancas, dia após dia, até sair da caixa, e o lixo interminável, acumulado
sob a ponte, ir inflando as poças espalhadas pelas ruelas da Vila Sanga. Sem
pedir licença, as águas lodosas foram escalando, degrau a degrau, as escadinhas
que davam acesso às malocas na beira do valão, até começarem a invadi-las sem
dó, espalhando-se por todas as peças feito o veneno que contamina o sangue, veia
por veia.
Como baratas ensandecidas, os seus vizinhos
fugiam para longe, com trouxas, fogões, geladeiras, sofás, o que pudessem
carregar. Só ele insistia em ficar. Não sabia para onde ir. Lauro contava
trinta e quatro anos e não tinha para onde fugir. Da janela, avaliou a situação da Vila Sanga. Nada se safara, quase só os telhados irregulares.
Molhado até a cintura, recolheu um pouco de roupa
seca do roupeiro, um saco de bolachas Maria e o pote de margarina ainda não alcançado pela invasão aquática da geladeira. Colocou tudo
sobre o armário salvador. Achou que estava um pouco febril, mas decidiu se aguentar
até a enchente esmorecer. As águas haveriam de baixar.
Os bombeiros o encontraram variando, desacordado,
dois dias depois, encolhido em sua ilhota particular. A Defesa Civil encaminhou
Lauro Antônio Barbosa Figueiredo – assim dizia a carteira de trabalho, enrolada
em plástico, que ele trazia no bolso - para o Ginásio Tesourinha, lar
provisório para os desabrigados. Já não havia vaga para Lauro nos hospitais.
Foi ali, num esparramo de colchões, roupas
e sacolas, que ele conheceu Adelaide, flagelada como ele, vinda dos arredores da
Aldeia dos Anjos. Ela havia sido encarregada de administrar-lhe os antibióticos,
pois ele precisava ser medicado e estava só.
Quando Lauro acordou, ela tentava
trocar-lhe a camisa empapada por outra oferecida pelos voluntários.
Lauro, com frio na alma, aninhou-se no colo de Adelaide. Ela o aceitou. Contou-lhe
que o tinham resgatado nas últimas. Fez até um cafuné na carapinha dele. Lauro
chorou de soluçar. Não tinha para onde fugir. Adelaide disse: o que é isso, o
que é isso? E se balançou ritmadamente como se fosse niná-lo. Lauro fechou os
olhos e deixou-se levar.
Mais tarde, tomaram a sopa juntos e
conversaram mais. Adelaide era de Camaquã. Lauro viera da Campanha há mais
tempo. Adelaide vivia de fazer faxinas. Lauro não sabia se ainda trabalhava na
madeireira do seu Nestor, na avenida Otto Niemeyer. Ela havia se casado com um encanador,
mas cansara de apanhar daquele cachaceiro. Lauro nunca tinha encontrado alguém.
Adelaide não tinha mais nada, perdera tudo na enchente. Lauro precisava conferir
o que havia sobrado do seu barraco na Vila Sanga.
Naquela noite - mais fria que a anterior,
pelo testemunho de Adelaide -, precisaram dividir cobertores. Foram se
ajeitando nos pelegos, como se dizia no interior, e se acomodaram em concha, ele
por fora, ela por dentro. Pelos clarões nas vidraças do Ginásio, via-se que seguia
trovejando. Soava o ruído de automóveis passando pela avenida, o choro de
algumas crianças, uns roncos compassados e as batidas da chuva sobre o telhado
de metal. Inconsolável, uma mulher rezava um terço infinito.
Adelaide sentiu o calor do corpo de Lauro junto
a si, e gostou. Lauro achou o cheiro dos cabelos de Adelaide parecido com o dos
campos da Fazenda Sílvia, seu rincão natal, e acolheu um arrepio de vento minuano
na base da espinha. Adelaide percebeu a pressão volumosa de Lauro sobre as suas
nádegas e lembrou-se de felicidades. Facilitou-lhe acessos. Trançaram-se as
pernas sob os cobertores grosseiros da Defesa Civil. Lauro beijou-lhe
delicadamente o cangote e acomodou-se, firme, entre as quenturas de Adelaide.
Entrou devagarinho em suas umidades, como se pedindo licenças e desculpas.
Adelaide aprovou as delicadezas de Lauro. Ajudou-o com a força macia das mãos a
libertar os seus quereres. Lauro ritmou-se a procurar destinos entre as
funduras de Adelaide. Ela se deixou acalentar pelas larguezas de Lauro e sentiu
os tremores de uma enchente cálida e afetuosa. Ele urrou para dentro, como
deveria. Adelaide mordeu os cobertores, quando necessário.
- Cravinho-do-campo - ele disse, cafungando os
cabelos dela.
- Vulcãozinho - ela disse, torcendo-se de
frente para o Lauro, e beijando-o com gosto.
Depois desse momento de comunhão, amaram-se
em silêncio por todas as noites que desfrutaram do conforto e da escuridão do
Ginásio Tesourinha. Uma só vez ela gemeu,
e pipocaram psius.
As chuvas amainaram uns dias depois. O rio
Guaíba, antes represado pelo vento sul, começou a baixar e, com ele, os seus
afluentes todos. Aos poucos, a vida da cidade foi voltando ao normal.
Lauro e Adelaide foram dos últimos desvalidos
a deixarem o abrigo. Tinham algumas mudas de roupa, um par de cobertores, um
fardo de papelão para lhes servir de cama e umas poucas promessas oficiais. Lauro
calçava coturnos usados, envergava um macacão folgado com propaganda da Renner
e uma japona verde de náilon. Adelaide recebera um par de botinas plásticas e
vestia um moletom vermelho, uma touca listrada e um casaco roxo de lã, que lhe cobria
até os joelhos. Estavam razoavelmente protegidos. Tinham medos e cultivavam esperanças.
O plano imediato era ver o que restava do barraco da Vila Sanga. Depois, retomar
os seus empregos.
Na parada de ônibus da praça Garibaldi, Lauro
pensou estar pegando um torcicolo.
As mãos frias de Adelaide, não havia o que esquentasse. Lauro apontou para o
céu e disse que ainda perigava chover. Adelaide viu que tinha dinheiro para as
passagens. Apeteceu a Lauro comer um bom churro. Adelaide disse que a Zona Sul
era muito longe e prometeu-lhe umas balas de goma para quando pudesse comprar.
No ônibus para a Vila Sanga, ela se aninhou
no ombro de Lauro. Ele esfregou as mãos de Adelaide para aquecê-las. Sou meio
velha para ti, ela disse, e um homem reclamou das trouxas no corredor. Adelaide
acomodou as sacolas no colo e Lauro pôs entre os joelhos o papelão e os
cobertores. O resmungão passou. Adelaide ensaiou uma careta e Lauro disse que o
sujeito era um abobado da enchente. Adelaide achou muito engraçado. Lauro
gostou de vê-la gargalhar. Tu que é, ela disse. E tu, também, ele devolveu. Olharam-se
ternamente e sorriram. Amavam-se. Tinham a vida toda pela frente.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
Que beleza! Verossímil ternura. Para lá de alguma possivel repugnância, a solidariedade sobrevive. Ainda que aos trambolhões.
ResponderExcluirQualquer maneira de amor vale amar.
ResponderExcluir