quinta-feira, 27 de abril de 2017

Na correnteza do dia



   Acordou com os galos, como se dizia no campo quando alguém madrugava. Agora poderia dizer “acordou com os sabiás”, tal a gritaria fora de hora que faziam junto a sua janela urbana esses bichos desambientados. Levantou-se protegendo as costas e calçou os chinelos que sempre deixava rente à parede. Catou pela alça o urinol, carregou-o com as duas mãos até o banheiro e livrou-se do peso da noite despejando o seu conteúdo na privada. Achava indigno deixar esse serviço para a pobre da Salete. Aproveitou o vaso aberto para uma nova urinada, pois velho nunca pode perder uma chance dessas. Depois, lavou o rosto e voltou ao quarto. Pôs os “ouvidos”, como costumava chamar o aparelho auditivo, e ouviu um zumbido desagradável na orelha direita. Havia que aproveitar a visita de algum filho para trocar as pilhas. Devolveu à caixa o aparelho incômodo.

   Na cozinha, tratou de preparar o mate, pois Salete ainda não chegara ao trabalho. Precisou recorrer à tal chaleira elétrica, que nunca fizera funcionar, pois lhe custaria muito achar a convencional. Assim que acomodou a erva na cuia, a bandida se pôs a chiar. Desligou-a, encheu a garrafa térmica e levou os apetrechos do mate ao escritório para entregar-se à crônica matinal, hábito cultivado desde a aposentadoria. A palavra escrita era a única arma de que dispunha para fazer-se ouvir entre os seus pares sempre tão apressados.

   Carminha havia esquecido o split ligado ao se retirar para dormir e o escritório amanhecera tão gelado quanto um freezer. O controle remoto do aparelho estava em lugar incerto e, se o encontrasse, não saberia usá-lo. Abriu a janela para suavizar a temperatura ambiente, mas a ventania lá fora o impediu de mantê-la aberta.

   Decidiu levar as coisas do mate para a sala e carregar também para lá o computador, uma ousadia que nunca tentava. Soltou os cabos do laptop e tirou-o da tomada. Para evitar problemas, desligou o aparato cheio de luzinhas verdes - o tal modem - que se ligava a ele e à tomada do telefone e transportou a besta para a sala de jantar.

   Apoiou o aparelho na mesa, plugou o fio na energia e conseguiu acertar a conexão do mouse já na terceira tentativa. Pronto. Ligou o monstro e logo se abriu na tela uma daquelas caixas de letrinhas miúdas que tanto o aterrorizavam. Como temia, a manobra não deu certo. Carminha, que às vezes o ajudava com o computador, estava dormindo, melhor seria ligar para um dos filhos. Júlio. Júlio já estaria acordado àquela hora.  Se ainda usasse a velha Olivetti, nada disso aconteceria.

   Catou a agenda dos telefones na gavetinha de Carminha, correu o dedo até o J e procurou pelo nome do filho, com alguma dificuldade, pois não lembrava onde tinha deixado os óculos.

   Havia lá três números, dois deles riscados. Fixou-se no terceiro, exercitando distâncias para ajustar o foco, e anotou num papelucho os oito dígitos em letra bem grande, para facilitar. Encontrou sem sinal o telefone fixo, totalmente mudo. 
          
   Voltou ao escritório e procurou pelo celular, que não costumava usar. Encontrou-o também sem vida em sua caixa original. Ligou-o à tomada mais próxima e deixou-o carregando. Tinha de esperar umas duas horas até poder usá-lo. O Júlio havia ensinado assim: usar sempre até o final da carga e depois recarregá-lo até o fim para preservar a bateria. Se é que não estava confundindo tudo.

   Retornou à sala de jantar, encheu uma cuia de mate e tomou o primeiro junto à pia do lavabo, cuspindo nela cada sorvo dado, pois não gostava de mate frio. Carminha iria depois reclamar das manchas na bancada. Paciência. Serviu-se de um segundo mate e topou com o que temia: estava desagradavelmente morno. Diabo de chaleira elétrica!

   Sem Salete e sem Carminha, seria muito trabalho preparar um café. Resolveu calçar os tênis e dar uma esticada nas pernas, aproveitando a rua a salvo da fumaceira dos automóveis. Comeria mais tarde. Foi até o quarto para pegar os calçados e uma jaqueta que o protegesse do frio, evitando olhar para a tevê que Carminha deixara acesa e muda por toda a noite, como sempre fazia, pois àquela hora o noticioso só falava de crimes, vendavais ou inundações.

   O relógio de parede, na cozinha, marcava sete horas. Na tabela na porta da geladeira, conferiu o horário dos remédios, os dele em azul, os da velha em vermelho. Logo seria a hora do diurético. Nunca lembrava se tomava inteiro ou só a metade do comprimido. Resgatou a caixinha lilás da cesta dos remédios, tinha quase certeza que era ela. Enfiou uma drágea na boca e engoliu-a em seco.

   Apoiado na bengala, sua aquisição mais recente, baixou ao térreo pelas escadas, pois não lembrava a senha do elevador. Cumprimentou o porteiro do risinho irônico e saiu para a rua manquitolando um pouco. Nos dias frescos, parecia que a prótese do joelho custava a engrenar.

   Hora dos outros irem para o trabalho: caixeiras arrumadinhas, barbados de terno e gravata, homens com jaleco de empresas, garotos de bermudas caídas, mulheres protegendo do vento as saias, servidores do hospital vizinho em uniforme verde-claro, todos apressados para chegar ao serviço ou à escola. Ou fugir do trabalho, no caso dos seguranças em final de turno.

   A rua ainda não estava trancada, mas os ônibus paravam lotados nos pontos de embarque, levantando nuvens de poeira e folhas secas. Camionetes de entregas eram carregadas. Carrinhos de mão cruzavam o caminho em frente ao prédio em construção. Mangueiras lavavam a urina grudenta das calçadas. Os comerciantes preparavam-se para a longa jornada do dia. Seria quarta ou quinta?

  Apalpou os bolsos e encontrou um pequeno maço de notas, a niqueleira de couro e a carteira de identidade. Avaliou a distância do mercado público e resolveu tomar café no bar do seu Onofre. Sentiu-se capaz. Pegar um táxi seria jogar dinheiro fora. Então se misturou à fauna desatinada e se foi avenida abaixo, como se fosse normal caminhar até o Centro. Para isso, não precisava apertar botões. Jogou-se decidido e manco na correnteza do dia.

                                                                             - Miguel da Costa Franco -

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