quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Fragmentos diurnos




Sou acordado pelo ruído de uma serra elétrica.
Urino em pé, sem conseguir salvar a borda do vaso. Mas depois a limpo cuidadosamente.
Como um iogurte natural, temperado com morangos meio passados.
Constato que se acabou a pasta de dentes.
Descubro que uma tia nonagenária está gravemente doente e passou a noite sobre uma maca no corredor da emergência, pois não há leitos disponíveis no hospital.
Faço um almoço rápido com um sorumbático gerente de banco, ansioso por dar sentido à própria vida.
Fico sabendo do interesse crescente das mulheres por pornografia dirigida a elas.
Leio histórias para um grupo de crianças pequenas, esperando avivar-lhes a imaginação, mas metade delas se aborrece na segunda narrativa. Na terceira, desisto.
Cruzo por uma moça na calçada e ouço-a dizer que acaba de perder a única coisa que tinha como certa em sua vida. E é tudo que fico sabendo sobre ela.
Observo um mendigo lendo seu jornal à sombra das árvores, sentado junto a um monte de fezes coberto de moscas.
Aprecio uma fotografia, com imagem outonal de uma árvore seca, carregada de sombrinhas amarelas.
Compro pães frescos e "medialunas" uruguaias.
Leio que Fulano de Tal perdeu a ação judicial que havia contra ele e será declarado torturador. Declarado, apenas, nada mais.
Leio também que um jornalista foi demitido por ter brincado, no ar, com seu todo-poderoso companheiro de programa esportivo.
Descubro macetes que as modelos de sucesso usam para parecerem mais belas do que efetivamente são.
Ouço que morreu muito cedo um cineasta conhecido.
Recebo convite para a próxima reunião do condomínio.
Pago pela internet a conta estratosférica da tevê fechada.
Tento escrever um conto.
Assisto na tevê a Suprema Corte sendo instigada a atropelar a Justiça e condenar sem provas os prováveis culpados.
Cancelo a viagem que programara para ver as baleias procriando em Santa Catarina.
Marco um encontro com minha advogada para lutar por direitos sonegados.
Tomo uns mates.
Vejo um jogo de futebol.
Como um pouco do pão que comprei.
Custo a dormir.
Resolvo fazer um quadro com a fotografia da árvore seca, carregada de sombrinhas amarelas.

                                                                             - Miguel da Costa Franco -


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