Sou acordado pelo ruído de uma
serra elétrica.
Urino em pé, sem conseguir
salvar a borda do vaso. Mas depois a limpo cuidadosamente.
Como um iogurte natural,
temperado com morangos meio passados.
Constato que se acabou a pasta
de dentes.
Descubro que uma tia
nonagenária está gravemente doente e passou a noite sobre uma maca no corredor
da emergência, pois não há leitos disponíveis no hospital.
Faço um almoço rápido com um
sorumbático gerente de banco, ansioso por dar sentido à própria vida.
Fico sabendo do interesse
crescente das mulheres por pornografia dirigida a elas.
Leio histórias para um grupo de
crianças pequenas, esperando avivar-lhes a imaginação, mas metade delas se
aborrece na segunda narrativa. Na terceira, desisto.
Cruzo por uma moça na calçada e
ouço-a dizer que acaba de perder a única coisa que tinha como certa em sua
vida. E é tudo que fico sabendo sobre ela.
Observo um mendigo lendo seu
jornal à sombra das árvores, sentado junto a um monte de fezes coberto de
moscas.
Aprecio uma fotografia, com
imagem outonal de uma árvore seca, carregada de sombrinhas amarelas.
Compro pães frescos e
"medialunas" uruguaias.
Leio que Fulano de Tal perdeu a
ação judicial que havia contra ele e será declarado torturador. Declarado,
apenas, nada mais.
Leio também que um jornalista
foi demitido por ter brincado, no ar, com seu todo-poderoso companheiro de
programa esportivo.
Descubro macetes que as modelos
de sucesso usam para parecerem mais belas do que efetivamente são.
Ouço que morreu muito cedo um
cineasta conhecido.
Recebo convite para a próxima
reunião do condomínio.
Pago pela internet a conta
estratosférica da tevê fechada.
Tento escrever um conto.
Assisto na tevê a Suprema Corte
sendo instigada a atropelar a Justiça e condenar sem provas os prováveis
culpados.
Cancelo a viagem que programara
para ver as baleias procriando em Santa Catarina.
Marco um encontro com minha
advogada para lutar por direitos sonegados.
Tomo uns mates.
Vejo um jogo de futebol.
Como um pouco do pão que
comprei.
Custo a dormir.
Resolvo fazer um quadro com a
fotografia da árvore seca, carregada de sombrinhas amarelas.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
Nenhum comentário:
Postar um comentário