Tenho cinco anos, mas já sei como se faz para abrir a porta. Vou fazer seis em setembro. Minha mãe sempre me pede para abrir quando alguém bate, ela sabe que eu gosto. Em Soledade, não há pessoas más e é provável que quem esteja batendo seja o meu amigo Jaime Joice ou um dos filhos do juiz.
Tenho
medo dos ciganos, que roubam crianças, mas eles não batem nas portas,
principalmente quando a gente mora em apartamentos. Eles ficam só andando para
lá e para cá pelas ruas, atrás de guris bobinhos para levar. O pai diz que é
mentira, mas os outros dizem que não.
Também
posso sair quando eu quiser, desde que avise a minha mãe ou alguém, e diga
certinho aonde eu vou. Por isso, já aprendi como se faz. Gosto disso. Corro para abrir sempre que apertam a campainha.
Estou
brincando no meu quarto e ela toca. Blim-blom, blim-blom. Disparo pelo corredor
afora e, movo a maçaneta com um pequeno esforço, como aprendi. Do outro lado, há um sujeito todo de verde, de
capacete e de botas, com uma arma grande pendurada no ombro direito. A
espingarda é pesada. Ele parece um daqueles soldadinhos que vem de brinde
nos vidros grandes de Toddy. (Eu prefiro o gosto do Nescau, mas peço para
comprarem Toddy por causa dos soldadinhos). Eu nunca tinha visto um deles de
verdade. Só os Pedro e Paulo que andam por aí, para quem a gente pode pedir
ajuda se os ciganos aparecerem de repente. Mas a farda deles não é de guerra
como essas verdes.
O
soldadinho na minha frente não parece tão forte nem tão corajoso como os do Toddy, que estão sempre em posição de luta, gritando e apontando a arma. Ou
atirando uma granada. Esse parece até meio envergonhado, e parece mais um guri
grandão do que um homem de verdade.
-
Tem alguém em casa?
Sei
que sou pequeno e ainda não sou alguém. Grito pela Ezilma, nossa empregada.
(Ela tem um caroção enorme no pescoço chamado papo, mas não é para a gente
falar disso). Sem esperá-la chegar, corro de volta para meu quarto e meus
brinquedos. O soldadinho segura a porta com o bico da arma e meio que vai
entrando. Não ligo. Ezilma já está chegando e ele é um soldado, não é bandido
nenhum. (De bandidos, sei que ela tem medo, porque até se abaixou atrás das
cadeiras na última matinê do cinema quando começou o tiroteio. E quis logo me
levar embora, com medo que a gente se machucasse. Eu disse que não queria, que
as balas nunca saíam lá da tela, mas ela me levou embora assim mesmo. Tinha
medo até dos mocinhos!).
Volto
para o quarto. Preciso terminar de carregar meu chevroletão vermelho com os
bobs de plástico da minha mãe, que para mim são toras de madeira. Não faz mal
que sejam coloridos, é só uma brincadeira mesmo. Terminada a operação de
carregamento, tenho uma longa estrada pela frente e o caminhão, muito
carregado, anda lento pelo assoalho do quarto. Preciso cuidar os limites
do ripado do piso para não cair com carga e tudo no despenhadeiro perigoso da
serra. Com cautela, atravesso a montanha e chego ao meu destino. A serraria.
Perigosa, mesmo, foi a travessia da ponte, improvisada com a tampa de uma caixa
de sapatos que peguei na loja do seu Antoniquinho. Uma tora azul de madeira
caiu no rio lá embaixo. Por pouco, não me caiu a carga toda.
Mas
ouço alguns barulhos estranhos na sala, barulho de outras coisas caindo. Deixo
meu brinquedo de lado e vou ver o que se passa. Na sala, o soldadinho
mal-educado derruba alguns livros do alto da estante. (O pai vai ficar
furioso. Ele sempre diz para a gente cuidar bem deles, não riscar, nem
amassar, nem nada). Mas o soldadinho se mexe de um jeito tão seguro que não
me animo a avisá-lo. Sei que aquilo vai desgostar profundamente o meu pai. Vou
até a cozinha procurando por Ezilma, preciso avisá-la. Mas não a encontro. Saio
para a área dos fundos, onde encosta a escadaria que dá para o barracão de
madeira, com as garagens do edifício. Do alto, vejo muitos outros
soldados lá embaixo, mexendo nas coisas empoeiradas. Resolvo descer.
Acho
aquilo muito estranho: estão arrancando as tábuas do piso da nossa garagem. Lá
onde guardamos a Rural Willys. (Vai ver o porão está infestado de gambás de
novo). Mas os soldados só espiam lá para baixo - primeiro um, depois outro com
jeito mais brabo - e devolvem os pranchões pesados para o seu lugar. Deixam a
porta aberta ao sair, mas não faz mal, porque a Rural do pai agora não está
ali. Ele foi para o fórum.
Eles
vão embora, eu subo. Procuro por Ezilma, mas ela sumiu.
Volto
para a rua, que está estranhamente agitada. Seu Rosa, da farmácia, está na
calçada. Há muitas pessoas amontoadas no Café Pátria, onde eu gosto de comprar
meus Bis. Tem um bolo de gente em frente à prefeitura, na ponta da praça. E uma
fila de soldados armados fechando a entrada.
Vejo
minha mãe, muito furiosa, tentando passar a barreira dos soldados, mas eles não
deixam. Acho estranho, não por ela estar furiosa, pois ela é meio braba mesmo,
mas porque ela devia estar na escola numa hora dessas. Meio junto dela está o
pai do Evandro, e este eles deixam passar depois de muita conversa para lá e
para cá. Ele é promotor público, que nem o meu. Não sei bem o que é isso, mas
sei que tem alguma importância. Sempre ganhamos entradas grátis para os circos
quando eles chegam por aqui. Só porque meu pai é promotor.
No
último circo que apareceu, o palhaço atirou a Mijoleta no colo do seu Rosa, e
ele ficou todo envergonhado, mas não sei por quê. Era só uma boneca de pano.
Depois,
a mãe ajudou o pai a fazer uma malinha. Bem pequena. Os soldados ficaram
esperando. Pareceu, pelo tamanho da mala, que meu pai não iria demorar, mas
achei que ele estava estranho, meio chateado. Nem me deu tchau direito.
Ele
desceu as escadas do edifício junto com os soldados e a gente foi atrás. Na
rua, ele embarcou numa Kombi que estava estacionada bem na frente da entrada, e
sentou no banco do fundo, com um soldado de cada lado, com as espingardas
viradas pra cima. Se alguma delas disparar num solavanco da Kombi, vai furar o
teto. Foi o que eu pensei.
Pensei,
também, que eu nunca tinha andado numa Kombi. Só no Ford do tio Walmor, no Jeep
Candango do Evandro, na Rural do pai e no Simca Presidente do amigo
dele, aquele que eu nunca sei o nome.
A
Ezilma nunca mais apareceu. Ela tem muito medo de armas. Minha mãe ficou com
muita pena, ela precisava muito da Ezilma e a Ezilma precisava muito trabalhar.
O
pai demorou uns quantos dias para voltar. Até me esqueci um pouco dele. Quando
chegou, tomou um banho daqueles. Ficou um tempão no banheiro, a gente lá fora
só ouvindo o barulho da água na cortina de plástico de peixinhos azuis.
Enquanto
ele tomava banho, seu Antoniquinho, nosso vizinho, com seu terno azul-marinho
de sempre, colete e relógio dourado de correntão - que eu achava meio parecido
com o Tio Patinhas -, entrou pela casa adentro. Parou na porta do banheiro e
começou a bater, na maior felicidade.
-
Tirando a morrinha do quartel? – ele gritava.
E
dava risada. A mãe também ria, mas estava meio envergonhada, porque o seu
Antoniquinho nunca tinha entrado lá em casa antes, e estava tudo meio desarrumado
naqueles dias.
Eu
fiquei só olhando aquela gritaria toda. Não sabia bem ainda o que era morrinha
de quartel. Nem que demorava tanto para sair.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
Muito bom!
ResponderExcluirParabéns! Excelente!
ResponderExcluirOs soldadinhos do Toddy era o máximo! E os índios também. Não eram coloridos como os que a gente "buscava" nas Americanas mas eram iguais: os soldadinhos verdes e os índios do forte-apache azuis!
ResponderExcluirMinha percepção da época era passar maravilhado pelo meio dos tanques, estacionados na Duque de Caxias e Fernando Machado, para chegar no colegio, O Paula Sores, atrás do Palácio, também todo cheio de gente. Lembro da mãe com receio que acabasse sobrando alguma bomba em nós pois morávamos a uma quadra do QG do exército e, naquela época, os bombardeios não eram ainda "cirúrgicos".