Texto integrante da Antologia de Contistas Bissextos, publicada pela Ed. L&PM em 2007
Passava das dez quando
entrei no salão: estava lotado. Por sorte, uma baixinha irritada vinha trazendo
pela gola um velhote de cara bexigosa, cobrindo-o de olha-aquis e já-se-vius.
Peguei o lugar dele, meio perto da porta principal. Não gosto dali, mas era o
único que havia.
- Deus me guarde duma
mulher dessas! – confidenciou o cidadão de paletó xadrez sentado a minha
frente.
Concordei de má vontade,
apenas franzindo a testa. Não gosto de muita conversa quando estou no bingo.
Funcionou: o homem desinteressou-se logo de mim.
Chamei a morena bunduda
de uniforme e pedi uma cartela. Paguei-a em silêncio. O homem de xadrez
concentrou-se na que tinha diante de si, parecia conferir a soma dos números
impressos em vermelho em cada linha. Ao fim, sorriu, confiante.
Eu, quieto, as mãos nos
bolsos, a esquerda rodando a medalhinha, presente de Dona Dirce. Aproveitei o
intervalo para correr os olhos pelo salão. Os mesmos tipinhos de sempre,
aposentados com suas roupas de sair, velhas de sapatinho peluciado,
solteironas maquiadas em excesso, viúvos meio cinzentos, pobretões
esperançosos, uns poucos casais de olhar desanimado, fumantes,
fumantes, fumantes. E outros viciados como eu. Há vários meses vivo disso.
Desde que bati pela segunda vez o táxi do Seu Jorge e ele me despediu. Pode ser
que a sorte venha da medalhinha que sua mulher me deu quando saí.
O microfone anuncia nova
rodada: já era hora. Uma morena jambo, com um vistoso blusão branco de gola
olímpica, sentada quatro mesas além, balança a franja e esfrega as mãos. Beijo
minha cartela e ela esboça um sorriso. Leva um dedo aos lábios, beija-o
e faz com ele o sinal da cruz sobre a sua. Depois, sorri outra vez, agora sem
segurar-se, mostrando uns dentes alvos que alegram repentinamente sua face
tristonha e seus olhos cavernosos.
Vinte e nove. Doze.
Trinta e sete. Acompanho o desenrolar do jogo, os movimentos, os risos. Trinta
e oito. Quarenta e dois. Oitenta e nove. Nenhuma pedra para mim até agora.
Confiro a efígie do santo na medalhinha. Sete. Trinta e nove. Vinte e um. Esse
me serve. Sessenta e três. Dezenove. Um. Marco outra vez a cartela. Sinto a
tensão do ambiente, acompanho os olhares, os tiques. Não sei se o que me agrada
mais é o jogo ou esse observar. A morena jambo parece estar indo bem. O homem
do paletó xadrez resmunga, impaciente. Setenta e sete. Treze. Quarenta e três.
Dezoito. O ar pesado de fumaça me enjoa. Me abate um tédio mortal. Resolvo
brincar com os números para exercitar a mente, como alguém me recomendara um
dia. Oito... vezes miou o gato, completo em pensamento. Vinte e seis... chineses
galopando na campina. Catorze... horas queria dormir, sigo eu.
– Bingo! – grita uma voz
ao longe.
Mil e dez reais de
prêmio, mas não foi dos meus. Preciso começar de novo. E recomeço. E vou
marcando e vou catalogando na memória os vencedores. Flerto com a morena jambo,
lanço outras sementes para todos os lados. Faço um tipo bonitão, agrado as
donas.
Sigo jogando e sigo
perdendo. Não é o meu dia. Seco a segunda caipira e nada. Mas sei quase todos
que ganharam. Vinte e sete (panos tem o teu vestido) e a morena jambo grita
bingo. Comemora com todos em sua mesa. Brinda com cerveja. Beija a cartela
olhando acintosamente para mim. Ergo para ela meu copo com restolhos de limão e
açúcar e bebo um pouco daquela calda morna em sua homenagem. Ela sorri,
oitocentos reais mais rica. Levanto e me dirijo ao bar.
- Dia de perder? –
pergunta o barman.
- Nunca é dia de perder – devolvo eu.
A medalhinha de Dona
Dirce já não suporta meus dedos insistentes. São Cristóvão, protetor dos
motoristas, está meio caolho.
Volto ao salão e procuro
lugar junto aos vencedores.
Vejo um assento vago, ao
lado da velha de cabelo azul. Dirijo-me para lá mas, por azar, ela se levanta
assim que eu sento. Ela e suas amigas todas. A sorte hoje não quer nada comigo,
penso.
Fico sozinho na mesa e
cruzo meu olhar abandonado com os olhos tristonhos da morena jambo. Convido-a a
sentar-se comigo com um movimento do copo e vejo-a erguer-se em câmera lenta
(ou seriam meus olhos?) e mover-se vagarosa em minha direção, um casaco nos
ombros, uma cerveja aberta e um copo inacabado nas mãos. Senta-se comigo,
deposita o casaco na cadeira ao lado, depois de sacar dele um cigarro meio
amassado. Acende-o e pergunta, só depois, se isso me incomoda. Faço que não com
a cabeça e ergo-lhe um brinde com minha caipira. Gosto quando ela sorri.
Vinte e sete (luas eu já
vi nascer), canta outra vez a voz feminina ao microfone, recomeçando a
jogatina.
- Esse número hoje me sai
em todas! – ouço-a dizer.
- Também tenho – digo-lhe
eu, uns olhos ridículos postos nos dela.
Quarenta e oito, trinta e
dois, dezessete. Peço a intimidade de uma tragada e adivinho a maciez de
seus lábios no calor úmido do cigarro que ela me oferece. Depois devolvo-o aos
seus lábios carnudos que o sugam com sofreguidão. Acaricio seu rosto e ela me
lembra que deixei de marcar o dezenove, cantado ainda há-pouquinho.
Doze (espelhos quebrados
pelo temporal). Trinta e sete (lajotas frouxas no passeio). Quarenta e um
(ladrões de bicicleta). Vinte e três (vinténs no teu bolsinho). Bebo minha
caipira aos golões para me animar. Oitenta. Quarenta. Cinquenta e um. Vejo-a
tamborilar com os dedos na mesa e decido acalmá-la com um carinho suave. Ela
não o repele. Gosta. Sessenta e três. Sete. Trinta e seis. Diz que seu nome é
Marilda e trabalha nas Lojas Colombinas. Vinte. Setenta e sete. Trinta e nove.
Quarenta e dois.
- Minha mãe também era
Marilda - minto. - Mas já morreu.
Onze (sepulturas quase
novas). Quinze (ratazanas moribundas).
- Bingo! - gritam do
fundo.
- Oh! – gemem os outros.
- Eu ainda moro com a
minha - responde-me ela
- Nunca te vejo por
aqui.
- Só venho aos domingos
para me distrair. Hoje dei sorte. Garanti o rancho da quinzena.
- Eu vi.
Ela fuma preguiçosamente
e reorganiza a mesa para uma nova rodada. A morena bunduda recolhe nossas
fichas com uma displicência cansada.
- Hoje só me ferrei –
confesso.
E atiro a medalhinha no
cinzeiro.
Marilda a recolhe,
observa com desdém aquele lanhado São Cristóvão caolho, ri de minha
superstição.
- Me deram, achei que
ajudava.
- Sempre vou te amar – lê com dificuldade, os olhos postos na medalhinha. - Quem é D?
- D? Sei lá. Nunca tinha
visto essa dedicatória – minto outra vez, lembrando das trepadas furtivas no
escritório da garagem e da gemeção histérica de Dona Dirce, que nunca, nunca
mesmo, consumava o orgasmo.
Marilda me olha com olhos
marotos.
- Mentiroso! – proclama, devolvendo ao cinzeiro a medalhinha abandonada.
Tomo um longo gole de
minha caipira.
- Vou jogar a última
rodada e vou-me embora – diz ela, com um suspiro cansado. – Amanhã trabalho.
- Posso te levar em casa?
- suplico.
- Podes, é aqui pertinho,
na Bento.
Dezenove (carros na
avenida). Quatro (marmanjos na marquise). Oitenta e oito (facadas na barriga).
Quarenta e quatro (balas na cintura). Marilda vibra, já marcou três vezes. Nove
(estocadas no teu rabo gordo). Marilda me socorre, marcando solícita a minha
cartela. Eu mesmo já desistira de ganhar daquela forma. Vinte e nove (pregas no
pescoço). Trinta e dois (anos de folia). Sete (mudas de roupa no roupeiro).
- Já fiz um terno –
ouço-a dizer, contente.
Cinquenta e quatro
(pendengas na Justiça). Setenta e sete (anos tem minha tia). Trinta (dentes na
tua boca murcha). Meu pensamento está longe. Hoje o dia é de Marilda, que
acende outro cigarro. Imagino que não vou gostar de seu hálito quando a beijar.
Seis (baganas no cinzeiro). Dois (solitários na calçada).
- Bingo! – gritam na mesa
ao lado.
- Putz! – vocifera
Marilda.
- Vamos embora - convido.
E me levanto, peremptório.
Ela me acompanha,
juntando as coisas com rapidez. Parece não querer perder-me. A solidão
indesejada das solteironas sempre me favoreceu. Ganhamos a rua após trocar as
fichas e caminhamos com vagar na noite estrelada e silenciosa. Está frio e a
rua está vazia. Seguimos lado a lado, sem nos tocarmos. Marilda canta alguma
coisa escolhendo com delicadeza, a cada passo, os ladrilhos do caminho onde
pousar o pé. Ao seu lado, apenas a sigo.
Alcançamos o edifício de
fachada fuliginosa onde ela mora. Marilda procura as chaves na
confusão da bolsa, abre a porta e me olha um pouco sem jeito.
- Obrigada por me trazer.
Eu não digo nada. Apenas
puxo-a para mim e dou um beijo suave naquela boca carnuda e ressecada.
- Sai desse frio para
gente se despedir direito – convida.
Entro e deixo a porta
bater por trás de mim. Ela deposita ao pé da escada a bolsa e o casaco
inconvenientes. Então, a encosto contra o armário de correspondências e
a abraço de corpo todo, sentindo seus seios exuberantes apertados contra mim.
Sua boca abre-se para receber a minha e eu a
beijo com fúria. Para o resto de sua triste vida.
Um golpe só do meu
estilete rasga-lhe, fora a fora, a jugular e os demais tecidos da garganta,
enegrecendo de um vinho escuro, pouco a pouco, o alvo blusão de gola olímpica.
Ela tenta afastar-me num esforço inútil, livrar-se da minha boca, sem sucesso.
Mantenho-a imóvel, até sentir seus lábios se afrouxarem, inapelavelmente, meus
olhos cravados na caixa postal do apartamento número trinta e três.
Trinta e três anos tinha
Cristo quando foi crucificado, exercito. Pouso-a no chão, com delicadeza.
- Bingo – cochicho em
seu ouvido.
Tomo de sua bolsa o
dinheiro das apostas. Limpo com seu casaco embolado as marcas
de sangue em minha jaqueta de couro e no meu fiel estilete. E me escapo dali.
Há meses que eu vivo
disso.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
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