segunda-feira, 29 de março de 2010

Nunca é dia de perder


Texto integrante da Antologia de Contistas Bissextos, publicada pela Ed. L&PM em 2007


Passava das dez quando entrei no salão: estava lotado. Por sorte, uma baixinha irritada vinha trazendo pela gola um velhote de cara bexigosa, cobrindo-o de olha-aquis e já-se-vius. Peguei o lugar dele, meio perto da porta principal. Não gosto dali, mas era o único que havia.
- Deus me guarde duma mulher dessas! – confidenciou o cidadão de paletó xadrez sentado a minha frente.
Concordei de má vontade, apenas franzindo a testa. Não gosto de muita conversa quando estou no bingo. Funcionou: o homem desinteressou-se logo de mim.
Chamei a morena bunduda de uniforme e pedi uma cartela. Paguei-a em silêncio. O homem de xadrez concentrou-se na que tinha diante de si, parecia conferir a soma dos números impressos em vermelho em cada linha. Ao fim, sorriu, confiante.
Eu, quieto, as mãos nos bolsos, a esquerda rodando a medalhinha, presente de Dona Dirce. Aproveitei o intervalo para correr os olhos pelo salão. Os mesmos tipinhos de sempre, aposentados com suas roupas de sair, velhas de sapatinho peluciado, solteironas maquiadas em excesso, viúvos meio cinzentos, pobretões esperançosos, uns poucos casais de olhar desanimado, fumantes, fumantes, fumantes. E outros viciados como eu. Há vários meses vivo disso. Desde que bati pela segunda vez o táxi do Seu Jorge e ele me despediu. Pode ser que a sorte venha da medalhinha que sua mulher me deu quando saí.
O microfone anuncia nova rodada: já era hora. Uma morena jambo, com um vistoso blusão branco de gola olímpica, sentada quatro mesas além, balança a franja e esfrega as mãos. Beijo minha cartela e ela esboça um sorriso. Leva um dedo aos lábios, beija-o e faz com ele o sinal da cruz sobre a sua. Depois, sorri outra vez, agora sem segurar-se, mostrando uns dentes alvos que alegram repentinamente sua face tristonha e seus olhos cavernosos.
Vinte e nove. Doze. Trinta e sete. Acompanho o desenrolar do jogo, os movimentos, os risos. Trinta e oito. Quarenta e dois. Oitenta e nove. Nenhuma pedra para mim até agora. Confiro a efígie do santo na medalhinha. Sete. Trinta e nove. Vinte e um. Esse me serve. Sessenta e três. Dezenove. Um. Marco outra vez a cartela. Sinto a tensão do ambiente, acompanho os olhares, os tiques. Não sei se o que me agrada mais é o jogo ou esse observar. A morena jambo parece estar indo bem. O homem do paletó xadrez resmunga, impaciente. Setenta e sete. Treze. Quarenta e três. Dezoito. O ar pesado de fumaça me enjoa. Me abate um tédio mortal. Resolvo brincar com os números para exercitar a mente, como alguém me recomendara um dia. Oito... vezes miou o gato, completo em pensamento. Vinte e seis... chineses galopando na campina. Catorze... horas queria dormir, sigo eu.
– Bingo! – grita uma voz ao longe.
Mil e dez reais de prêmio, mas não foi dos meus. Preciso começar de novo. E recomeço. E vou marcando e vou catalogando na memória os vencedores. Flerto com a morena jambo, lanço outras sementes para todos os lados. Faço um tipo bonitão, agrado as donas.
Sigo jogando e sigo perdendo. Não é o meu dia. Seco a segunda caipira e nada. Mas sei quase todos que ganharam. Vinte e sete (panos tem o teu vestido) e a morena jambo grita bingo. Comemora com todos em sua mesa. Brinda com cerveja. Beija a cartela olhando acintosamente para mim. Ergo para ela meu copo com restolhos de limão e açúcar e bebo um pouco daquela calda morna em sua homenagem. Ela sorri, oitocentos reais mais rica. Levanto e me dirijo ao bar.
- Dia de perder? – pergunta o barman.
- Nunca é dia de perder – devolvo eu.
A medalhinha de Dona Dirce já não suporta meus dedos insistentes. São Cristóvão, protetor dos motoristas, está meio caolho.
Volto ao salão e procuro lugar junto aos vencedores.
Vejo um assento vago, ao lado da velha de cabelo azul. Dirijo-me para lá mas, por azar, ela se levanta assim que eu sento. Ela e suas amigas todas. A sorte hoje não quer nada comigo, penso.
Fico sozinho na mesa e cruzo meu olhar abandonado com os olhos tristonhos da morena jambo. Convido-a a sentar-se comigo com um movimento do copo e vejo-a erguer-se em câmera lenta (ou seriam meus olhos?) e mover-se vagarosa em minha direção, um casaco nos ombros, uma cerveja aberta e um copo inacabado nas mãos. Senta-se comigo, deposita o casaco na cadeira ao lado, depois de sacar dele um cigarro meio amassado. Acende-o e pergunta, só depois, se isso me incomoda. Faço que não com a cabeça e ergo-lhe um brinde com minha caipira. Gosto quando ela sorri.
Vinte e sete (luas eu já vi nascer), canta outra vez a voz feminina ao microfone, recomeçando a jogatina.
- Esse número hoje me sai em todas! – ouço-a dizer.
- Também tenho – digo-lhe eu, uns olhos ridículos postos nos dela.
Quarenta e oito, trinta e dois, dezessete. Peço a intimidade de uma tragada e adivinho a maciez de seus lábios no calor úmido do cigarro que ela me oferece. Depois devolvo-o aos seus lábios carnudos que o sugam com sofreguidão. Acaricio seu rosto e ela me lembra que deixei de marcar o dezenove, cantado ainda há-pouquinho.
Doze (espelhos quebrados pelo temporal). Trinta e sete (lajotas frouxas no passeio). Quarenta e um (ladrões de bicicleta). Vinte e três (vinténs no teu bolsinho). Bebo minha caipira aos golões para me animar. Oitenta. Quarenta. Cinquenta e um. Vejo-a tamborilar com os dedos na mesa e decido acalmá-la com um carinho suave. Ela não o repele. Gosta. Sessenta e três. Sete. Trinta e seis. Diz que seu nome é Marilda e trabalha nas Lojas Colombinas. Vinte. Setenta e sete. Trinta e nove. Quarenta e dois.
- Minha mãe também era Marilda - minto. - Mas já morreu.
Onze (sepulturas quase novas). Quinze (ratazanas moribundas).
- Bingo! - gritam do fundo.
- Oh! – gemem os outros.
- Eu ainda moro com a minha - responde-me ela
- Nunca te vejo por aqui.
- Só venho aos domingos para me distrair. Hoje dei sorte. Garanti o rancho da quinzena.
- Eu vi.
Ela fuma preguiçosamente e reorganiza a mesa para uma nova rodada. A morena bunduda recolhe nossas fichas com uma displicência cansada.
- Hoje só me ferrei – confesso.
E atiro a medalhinha no cinzeiro.
Marilda a recolhe, observa com desdém aquele lanhado São Cristóvão caolho, ri de minha superstição.
- Me deram, achei que ajudava.
- Sempre vou te amar – lê com dificuldade, os olhos postos na medalhinha. - Quem é D?
- D? Sei lá. Nunca tinha visto essa dedicatória – minto outra vez, lembrando das trepadas furtivas no escritório da garagem e da gemeção histérica de Dona Dirce, que nunca, nunca mesmo, consumava o orgasmo.
Marilda me olha com olhos marotos.
- Mentiroso! – proclama, devolvendo ao cinzeiro a medalhinha abandonada.
Tomo um longo gole de minha caipira.
- Vou jogar a última rodada e vou-me embora – diz ela, com um suspiro cansado. – Amanhã trabalho.
- Posso te levar em casa? - suplico.
- Podes, é aqui pertinho, na Bento.
Dezenove (carros na avenida). Quatro (marmanjos na marquise). Oitenta e oito (facadas na barriga). Quarenta e quatro (balas na cintura). Marilda vibra, já marcou três vezes. Nove (estocadas no teu rabo gordo). Marilda me socorre, marcando solícita a minha cartela. Eu mesmo já desistira de ganhar daquela forma. Vinte e nove (pregas no pescoço). Trinta e dois (anos de folia). Sete (mudas de roupa no roupeiro).
- Já fiz um terno – ouço-a dizer, contente.
Cinquenta e quatro (pendengas na Justiça). Setenta e sete (anos tem minha tia). Trinta (dentes na tua boca murcha). Meu pensamento está longe. Hoje o dia é de Marilda, que acende outro cigarro. Imagino que não vou gostar de seu hálito quando a beijar. Seis (baganas no cinzeiro). Dois (solitários na calçada).
- Bingo! – gritam na mesa ao lado.
- Putz! – vocifera Marilda.
- Vamos embora - convido.
E me levanto, peremptório.
Ela me acompanha, juntando as coisas com rapidez. Parece não querer perder-me. A solidão indesejada das solteironas sempre me favoreceu. Ganhamos a rua após trocar as fichas e caminhamos com vagar na noite estrelada e silenciosa. Está frio e a rua está vazia. Seguimos lado a lado, sem nos tocarmos. Marilda canta alguma coisa escolhendo com delicadeza, a cada passo, os ladrilhos do caminho onde pousar o pé. Ao seu lado, apenas a sigo. 
Alcançamos o edifício de fachada fuliginosa onde ela mora. Marilda procura as chaves na confusão da bolsa, abre a porta e me olha um pouco sem jeito.
- Obrigada por me trazer.
Eu não digo nada. Apenas puxo-a para mim e dou um beijo suave naquela boca carnuda e ressecada.
- Sai desse frio para gente se despedir direito – convida.
Entro e deixo a porta bater por trás de mim. Ela deposita ao pé da escada a bolsa e o casaco inconvenientes. Então, a encosto contra o armário de correspondências e a abraço de corpo todo, sentindo seus seios exuberantes apertados contra mim. Sua boca abre-se para receber a minha e eu a beijo com fúria. Para o resto de sua triste vida.
Um golpe só do meu estilete rasga-lhe, fora a fora, a jugular e os demais tecidos da garganta, enegrecendo de um vinho escuro, pouco a pouco, o alvo blusão de gola olímpica. Ela tenta afastar-me num esforço inútil, livrar-se da minha boca, sem sucesso. Mantenho-a imóvel, até sentir seus lábios se afrouxarem, inapelavelmente, meus olhos cravados na caixa postal do apartamento número trinta e três.
Trinta e três anos tinha Cristo quando foi crucificado, exercito. Pouso-a no chão, com delicadeza.
- Bingo – cochicho em seu ouvido.
Tomo de sua bolsa o dinheiro das apostas. Limpo com seu casaco embolado as marcas de sangue em minha jaqueta de couro e no meu fiel estilete. E me escapo dali.
Há meses que eu vivo disso.

                                                                             - Miguel da Costa Franco -

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