Texto publicado no número 6 (3 a 5 de jan/20) da revista
(parêntese)
Seguíamos
de carro pelo costumeiro trajeto matinal até a escola, minha filha e eu, quando
uma lanhada Kombi amarela surgiu na contramão. A menina apressou-se a gritar seu
urgente “batkombi” e declarou:
-
Um a zero.
Ela
acabara de ensinar-me uma modalidade de disputa para servir de distração
durante nossa viagem diária. Na brincadeira, era preciso antecipar-se ao outro,
apontando com rapidez as Kombis que surgissem no caminho, disparando ao vê-las um
ágil e sonoro “batkombi”.
De
olhar arguto e mente afiada, minha filha atropelou-me por mais três vezes antes
que eu esboçasse reação, solfejando meu ansioso “batkombi” para o veículo de
entregas, que saía de uma ferragem. Mais adiante, apontei a Kombi de uma
floricultura - “batkombi” - e, por último, a van escolar estacionada junto ao colégio:
“batkombi”. Paramos por aí: quatro a três foi o escore da partida. Na volta
para casa, após cinco períodos exaustivos de aulas, pegando-a mais desatenta,
consegui alcançar um honroso empate em dois a dois.
Dia
após dia, passamos a exercitar nossa agilidade mental, garimpando as
resistentes Kombis que ainda circulam pela cidade em nossas idas e vindas, sem
deixar escapar nenhuma delas. Descobrimos
que, após uma noite mal dormida, o resultado de um “batkombi” pode ser um
verdadeiro desastre. Trânsito excessivo ou chuvarada são prejudiciais para quem
precisa estar atento à direção do automóvel. Com o tempo, inserimos no jogo
regras adicionais. Determinamos peso negativo aos eventuais equívocos – as
dissimuladas vans coreanas que confundem nossas retinas! E estabelecemos um
veto às repetições, de modo que a Kombi que se ponha em movimento e surja de
novo diante de nós não possa ser contada duas vezes.
Desistimos
de uma breve tentativa de exercitar a modalidade “batfusca”, pois os
besourinhos – aposentados há mais tempo - já andam bem escassos. Tínhamos de
nos contentar com indignos escores mínimos ou frustrantes zero a zero.
Numa
recente noite de sexta, dia de sair a sós com minha companheira, ela –
instruída pela nossa filha - surpreendeu-me já na saída da garagem com um inesperado
“batkombi”. Rimos um para o outro como não fazíamos há meses. Daquela vez, a
refrega foi duríssima. Agora, virou febre ou vício. Exercito-me até mesmo sozinho,
ou vendo televisão. Quando percebo a presença do monobloco austero que circula
pelas ruas há mais tempo do que eu, mentalizo um animado ”batkombi”. Quis até rever,
por simpatia, o filme “Little Miss Sunshine”.
Espalhando-se
pela família toda, o jogo mostrou-se benéfico. Voltamos a conversar sobre
amenidades. Paramos de dar tanta atenção aos noticiosos normalizadores do
absurdo. Deixamos de lado, ao menos durante os nossos longos percursos pela
cidade, os catastrofismos, os discursos inacreditáveis, as políticas indecorosas,
as batalhas inglórias e a apatia. A realidade anda tão dura que, às vezes,
sofremos reveses: a menina Ágatha Félix foi assassinada por um policial no
interior de uma Kombi no Complexo do Alemão.
Ainda
assim, vendo progressos em minha visão de futuro, meu terapeuta reduziu a dose
dos antidepressivos. De outra parte, investi num par de óculos novos e voltei a
andar de cabeça erguida. Procurando por Kombis, eu admito, o que é que se vai
fazer? Nestes tempos rascantes, só o bom humor e a pureza das brincadeiras infantis
podem nos devolver o prumo.
A
Kombi quase septuagenária, mais idosa do que a maioria da população, é uma presença
basilar em nossas vidas. Bem conservada ou batendo latas, todos a conhecem e
reverenciam de algum modo. Ela é o que sempre foi. Leva o soldado, o estudante
e o trabalhador. Distribui artigos caros ou baratos. Pode ser lanchonete, livraria,
oficina ou moradia temporária. Serve igualmente aos hippies e aos empresários, ao reciclador de materiais ou às
freirinhas intocadas do convento. Sem luxos e honesta, a Kombi é resiliente e
prática. Equânime, como deveriam ser as nossas combalidas instituições. Empoleirado
em seu volante, a poucos centímetros do pára-choque, seu condutor põe em risco
as próprias pernas, servindo a propósitos coletivos, como deveriam almejar, em
regra, os nossos governantes.
Procurando
por Kombis em cada canto da cidade, vi rebrotar uma haste estabilizadora em
minha vida. Voltou-me uma sensação de pertencimento, a segurança de uma âncora.
Espelhe-se nisso: a Kombi oferece a sinceridade humilde que já não reconhecemos
em governos e esquadrões, juízes e procuradores, religiosos e policiais. A
Kombi é uma das poucas instituições que ainda funciona nos termos igualitários
da Constituição.
Não
faço aqui um novo apelo ridículo e extemporâneo à Volkswagen, inspirado no
Itamar Franco, para ressuscitar modelos aposentados, como ele fez em tempos de descrédito
semelhante ao atual. Apenas sugiro uma abertura para o humor e para a leveza. O
lúdico pode nos salvar. Prepare o seu ruidoso “batkombi”.
A
esperança, por ora, é uma Kombi velha, que logo mais há de apontar na esquina.
- Miguel da Costa Franco -
Maravilha. Metáfora para o resgate dos valores adormecidos pelo dia a dia. Parabéns!!
ResponderExcluirObrigado, Avelina.
ExcluirFranco, totalmente Franco.
ResponderExcluirMaravilhoso texto, Miguel! Liberdade é uma calça velha, azul e desborads. A esperança é uma Kombi velha, que surge pelas esquinas da vida!
ResponderExcluirVerdade, Bibi, enxergaste mais além.
ResponderExcluir❤️
ExcluirE "desborads" (?😂) = desbotada. Claro. 😘