quarta-feira, 18 de abril de 2018

Maciça



   Eu havia sentado sobre a mureta do luxuoso Hotel Maksoud Plaza, na alameda Campinas, e depositado a mochila pesada perto da floreira. Faltavam ainda vinte minutos para a chegada do ônibus que me levaria ao aeroporto de Guarulhos, distante do centro de São Paulo. Tinha o coração opresso. Acabara de despedir-me de minha filha Isadora, de retorno à Portugal, agora com visto de residência, tão jovem para viver tão longe.

   Ainda não sabia quando poderia abraçá-la de novo e mirá-la de perto, dentro dos olhos, que costumávamos levar lacrimejantes após cada despedida. Sempre havia sido assim, desde seus nove aninhos, época em que me separei de sua mãe, a cada partida minha ou dela, fosse breve ou fosse longa a perspectiva de afastamento.

   Era hora do rush. Enlaçando como um polvo a minha tristeza e a minha pequenez, orbitava ao redor de mim o movimento incessante daquela cidade incansável. As lanternas movediças dos automóveis riscavam de rubro o brilho aquoso das minhas pupilas e as buzinadas frequentes forçavam-me a uma espécie de apagamento interior, em busca de um pouco de paz.

   - É daqui que sai o ônibus para o aeroporto? - perguntou-me a senhora bem vestida.

   - Espero que sim – respondi, resgatado do meu torpor. - Também vou para lá.

   A moça ao lado dela, a quem ela chamava de Maciça, não mostrava nenhum ânimo ou graça. Era miúda e de aspecto frágil, com cabelos curtos e mal cortados. Carregava uma mochilinha de cor laranja, vestia uma blusa encarnada e uma calça azul piscina. As maçãs do rosto tinham maquiagem em excesso, de modo que batizá-la de Rouge seria mais adequado que chamá-la de Maciça.

   A caboclinha sorriu quando a senhora disse que ela ia embarcar para Teresina perto da meia-noite.

   - Faz quinze anos – disse, com voz sumida.

   Imaginei que devia ter chegado a São Paulo ainda criança. Puxei conversa, lembrando da boa comida de Teresina. Com o passar do tempo, comecei a me preocupar. Não teria chegado até ali sem ajuda, seria sua primeira viagem de avião e ela parecia imaginar o aeroporto de Guarulhos – imenso e caótico, com seus três terminais - como uma versão levemente ampliada daquele ponto de parada.

   Embarcamos no ônibus. A patroa de Maciça, desincumbindo-se da responsabilidade por auxiliá-la ao vivo, pediu ao motorista que a ajudasse na chegada ao aeroporto, ao que ele prontamente se dispôs. Pela companhia aérea mencionada, o moço antecipou que ela deveria descer no terminal dois, o mesmo destino que o meu. Trocaram umas poucas palavras mais e depois tudo no ônibus silenciou. Um televisor pregado ao teto - mudo, graças a Deus! - despejava sobre os passageiros a opressiva onipresença da rede Globo.

   Eu havia sentado na mesma poltrona do dia da chegada, mas ao meu lado não estava agora, como da vez anterior, a filha de quem eu me havia despedido há minutos, em frente ao Maksoud Plaza, após dois dias juntos em São Paulo. Estava triste. Por mais que eu quisesse ajudá-la a encontrar seus caminhos, tudo o que eu fazia sempre me parecia pouco, insuficiente. Pensava não ter sido o pai que minhas filhas precisavam. Mantinha-me atento, mas ao largo de suas vidas, ajudava, socorria, opinava, às vezes parecia intrometer-me em excesso, outras vezes sucumbia ao temor de afrontá-las com minha presença perturbadora, ora sofria rechaços, ora era bem recebido. Eu nunca sabia se era bem-vindo. Talvez nunca viesse, de fato, a saber. Cada encontro era uma batalha de emoções entre o desejo de compartilhar afetos e os freios impostos pela autoestima claudicante do pai. Eu abandonara o lar com as filhas ainda pequenas e pagava um preço alto por isso.

   O motorista anunciou a parada do terminal dois. Catei minha mochila, o celular que havia plugado à tomada para recarga da bateria, e rumei para a porta de saída. Maciça permanecia em seu banco, minha filha já teria escapado. Viam-se gotas de suor em sua testa e dedos crispados agarrando a mochilinha laranja.

   - Vamos – eu disse. – Eu ajudo.

   Ela ergueu-se com pressa e me seguiu, sem dizer palavra. Encaminhamo-nos aos totens de check-in. Pedi auxílio para Maciça a uma funcionária da companhia, mas o atendimento foi burocrático e pouco esclarecedor. Vi que ela permanecia sem entender em que mundo se havia metido. Tomei ao meu encargo realizar os procedimentos necessários, difíceis até para os iniciados, e só então fiquei sabendo que se chamava Maria Cícera da Silva. Vinha do Brasil dos Silvas, é claro.

   Imprimi o cartão de embarque e lhe alcancei boleto e documentos. Ela permaneceu imóvel, aguardando orientações, em meio à balbúrdia do saguão. Olhava para tudo com ar de espanto: a altura do pé-direito, os placares luminosos, o vaivém interminável de pessoas e carrinhos de malas, o uniforme vistoso das atendentes, as meninas te agarrando pela manga e ofertando brindes.

   Perguntei se queria comer algo, ainda dava tempo, mas ela me disse que não. Decidi levá-la até a área de embarque, achei que se perderia pelos corredores. Recomendei cuidado com os pertences, aglomerações são a alegria dos malandros.

   – Dessa parte, a patroa me avisou.

   Antes de soltá-la em seu barquinho a remos naquele oceano de gente, sugeri que pedisse ajuda a alguém para chegar ao portão 228, após a passagem pelo raio-X.

   - Raio X?

   Ensinei Maciça a ler o painel de chegadas e partidas para acompanhar possíveis alterações no local de embarque – coisa corriqueira - e desejei-lhe bom retorno para casa. Endereçou-me um sorriso luminoso e um "muito obrigada, seu moço".

   Foi-se para o interior do terminal, insegura mas altiva, antevendo encontrar já na sala ao lado as cabras, os cajueiros e os mandacarus do sertão do Piauí.

   Fui tratar do meu check-in e do meu jantar, com novo aperto no coração. Isadora, onde andaria?

   Quando me encaminhava para o portão 201, já  meio  atrasado, resolvi conferir – invertendo caminhos - se Maciça havia chegado ao seu destino provisório. Não a encontrei. Verifiquei, uma a uma, todas as portas de embarque de 200 a 300, mas não achei a mocinha deslocada, de blusa vermelha e calça azul-piscina, tão perdida, tão paciente, tão diferente da minha menina. 


                                                                         - Miguel da Costa Franco -

7 comentários:

  1. Que belo textos, esse teu olhar crônico aclara nossos olhos.

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  2. Uma pintura esse teu texto, Miguel. Um retrato dos Brasis. Me emocionei. Um abraço.

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  3. Ah, essa carga do abandono, essa pesada mochila da responsabilidade paterna...
    Mui lindo, Mig!

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  4. Que belo texto, esse teu olhar crônico aclara nossos olhos.

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