sábado, 19 de maio de 2018

Ârram



Que sabia eu sobre sexo? Quase nada. Tinha perdido a virgindade num cabaré da rua Sete de Setembro, a cabresto de uma gorducha apressada, que mais trabalho teve em se pelar do que em levar-me ao orgasmo. Para tanto, três ou quatro investidas curtas foram suficientes.

Anita era a primeira namorada mais promissora, fisicamente falando. Não era um primor de beleza, mas era doce e simpática, acessível. Uns meses mais velha do que eu, gostava de dar longos beijos molhados, de novela. Magra e delicada, cabelos castanhos cacheados e lábios finos, deixava-se tocar nas leves protuberâncias que escondia sob sutiãs quase desnecessários. Embaixo, não. Ali era território sagrado, inviolável. Ou fui eu que não tive coragem de tentar. Também pode ser. Em troca, ficava feliz quando via o volume emergente nas minhas calças e encostava-se em mim, com movimentos pendulares, sorrindo, pura alegria. Era bom.

Encontrávamo-nos em reuniões dançantes nas casas de amigos, nas matinês de cinema ou na praça em frente ao edifício dela, perto do “Julinho”, onde Anita estudava.

Tínhamos já um mês de namoro, quando me convidou para conhecer a família. Para um almoço de domingo.

- Meu pai vai fazer lentilhas e costelinhas de porco - disse.

O que ocorreu naquele dia foi imprevisível para quem, como eu, mal sabia que “veado” não era apenas uma expressão qualquer - similar a punheteiro, cagalhão ou mocorongo -, com que a gurizada costumava ofender-se de parte a parte nas brigas e discussões, ou mesmo nas brincadeiras entre si. Aprendi que havia outras nuances, mais de um tipo de veado. Inclusive, os inconvenientes.

Tímido e com pouca experiência, apitei a campainha cheio de coragem e vergonhas. Gostava da Anita,nenhuma paixão alucinante, mas precisava encarar a bronca. Antevia avanços e ousadias no sofá da sala ou na cama de seu quarto, após o almoço. Os hormônios em fúria justificavam o esforço de encarar seu Ernesto e Dona Darci, mais os três irmãos maiores.

Quando ela me disse que eram três – e mais velhos, entre dezenove e vinte e cinco anos - gelei. Não iam largar do nosso pé e, pelo menos algum, deles perigava reagir mal às minhas intenções exploratórias. Quem, nessa idade, não conhecia o truque manjado das almofadas no colo?

Júlio, o irmão queridinho da Anita, abriu a porta. Foi simpático e receptivo, mas não me pus à vontade. Era muito afeminado, mais do que o Clóvis, do meu prédio, que sempre convidava a gurizada, sem muito sucesso, a embarcar para passeios no seu fusquinha bege 69, de bancos claros e cheirando a aromatizantes enjoativos.

Júlio deu uns gritinhos efusivos, chamou Anita e todos os demais.

- É o gatinho da Anita, que fofo, olha só!

O que devia ser o Carlos se apresentou como Camila, e Ernestinho pediu-me que o chamasse de Sheila. Camila, de longos cabelos ruivos, vestia uma saia curta, meias de malha e sapatões de salto, e um bustiê curtinho, de onde explodiam seios exuberantes, cem vezes maiores que os de Anita. Sheila trajava um colante vermelho brilhoso e uma miniblusa roxa de tecido sintético, que demarcavam sua bunda opulenta e seus seios também bojudos. Nos cabelos loiros e compridos, ostentava uma tiara larga, à “la” Celly Campello.

“Alô, cupido, vá longe de mim”, pensei eu, sem saber onde botar as mãos. Camila e Sheila voavam no meu entorno, apalpavam-me, roçavam seus corpos carnudos em meus braços inertes, a peitarra no meu queixo.

- Puxa, gato, que pedacinho de mau caminho!

- Que fofo!

- Que graça, ele!

Júlio me salvava.

- Ele é da Anita! Ele é da Anita!

E empurrava Camila e Sheila para longe do meu corpinho assustado. Por fim, Anita apareceu, com suas roupas modestas de sempre - saia e blusa nada chamativas -, pegou-me pela mão e levou-me a salvo para dentro.

Sentamo-nos na cama inferior de um beliche. Naquele quarto de cortinas cor de laranja, havia dois. Pelo que deduzi, dormiam todos os filhos ali, como eu e os meus irmãos no nosso apartamento da Venâncio Aires. Logo vieram as duas borboletas gigantes assediar-me outra vez, mas Anita foi enérgica, e elas nos deixaram em paz.

Beijamo-nos. Eu tinha até me esquecido disso.

- Por que não me contou?

- Contar o quê? - ela perguntou. - Cada um, cada um.

Anita era um amor de pessoa.

- Tá certo – eu disse. - Cada um, cada um.

Dona Darci botou a mesa e nos chamou para comer. O pai numa ponta, a mãe na outra; Sheila e Camila de um lado; Júlio, Anita e eu do outro, apertado entre minha namorada e a matriarca. Sim, pois era ela, Dona Darci, que coordenava tudo, quem senta aqui, quem senta ali. Na outra ponta da mesa, seu Ernesto, ombros caídos, olhos concentrados no prato, num mutismo inimaginável. Acho que não ouvi jamais a sua voz.

A mãe mandou Anita servir os pratos, enquanto Camila e Sheila importunavam Júlio, o mais novo deles. Foi o assunto de todo o almoço. Que Júlio tinha de assumir e botar também ele uns peitos grandões, era disso que homem gostava.

- Anita, também – sugeriu Camila, e me pediu confirmação.

Eu, quietinho. Pobre da Anita-peitinhos-de-jabuticaba se eu concordasse. Anita não deu bola, seguiu servindo as lentilhas, o arroz, as costelinhas.

Júlio, coitado, só se defendia.

- Não quero ser como vocês, será que não entendem?

Mas as borboletas voltavam à carga.

- Tu tens medo da faca, bobalhão.

- Não vai arrumar ninguém com essas tetinhas miúdas.

- Não quero ser travesti - defendia-se o Júlio.  - Quero ficar como sou.

Dona Darci, uma gordota atarracada e austera, bateu forte na mesa, deu um basta naquilo.

- Que cada um seja o que quiser! Deixem o Júlio em paz! Se não quer tetas, fica sem tetas. E chega desse assunto.

- Sim, meu general – debochou Camila, batendo continência e fazendo uma careta para Sheila.

Mas baixaram a crista, ante o olhar fuzilante da mãe.

Só então pudemos comer em paz.

Estava bem boa a lentilha.

Dona Darci elogiou o marido:

- Tá gostosinho, Nenê.

Ele deu um sorriso cansado.

Depois do almoço, a casa acalmou. As borboletas gigantes saíram, Júlio ficou assistindo “Perdidos no espaço”, deitado no sofá da sala – adorava o Dr. Smith -, e Dona Darci “levou o Nenê para sestear”.

Eu tentei dar uns amassos na Anita lá no beliche, mas estava me sentindo estranho, um pouco perdido naquela confusão de papéis. Fiquei pensando que podia botar a mão na coisinha dela, só para ter certeza, mas o braço emperrava na metade da coxa. Não tive coragem.

Anita era toda sensitiva, uma querideza, percebeu que eu estava diferente: meio freado, caladão.

- Acostuma - ela disse, com um arzinho esperançoso, uma carinha matreira.

- Ârram - eu respondi. – Ãrram.

Ela ficou me olhando, intrigada, eu desconversei. Aquele “ârram”, na luz alaranjada do quarto, variando a entonação, servia a todas as opções.

Achou estranho eu perguntar se o nome dela era só Anita, ou se tinha algum outro.

Quando voltei para casa, minha mãe - sempre querendo saber mais detalhes da minha vida -, perguntou, inutilmente:

- Como foi lá?

E eu respondi:

- Normal - neutro, como de costume.

Depois, escapei para o meu quarto, sem falar de Anita, dúvidas e bolinações interrompidas, nem de pais apopléticos, mães generalas e irmãos travestis.


                                                                       - Miguel da Costa Franco -

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