Eu havia sentado sobre a mureta do luxuoso Hotel
Maksoud Plaza, na alameda Campinas, e depositado a mochila pesada perto da
floreira. Faltavam ainda vinte minutos para a chegada do ônibus que me levaria
ao aeroporto de Guarulhos, distante do centro de São Paulo. Tinha o coração
opresso. Acabara de despedir-me de minha filha Isadora, de retorno à Portugal, agora
com visto de residência, tão jovem para viver tão longe.
Ainda não sabia quando poderia abraçá-la de novo
e mirá-la de perto, dentro dos olhos, que costumávamos levar lacrimejantes após
cada despedida. Sempre havia sido assim, desde seus nove aninhos, época em que
me separei de sua mãe, a cada partida minha ou dela, fosse breve ou fosse longa
a perspectiva de afastamento.
Era hora do rush.
Enlaçando como um polvo a minha tristeza e a minha pequenez, orbitava ao redor
de mim o movimento incessante daquela cidade incansável. As lanternas movediças
dos automóveis riscavam de rubro o brilho aquoso das minhas pupilas e as
buzinadas frequentes forçavam-me a uma espécie de apagamento interior, em busca
de um pouco de paz.
- É daqui que sai o ônibus para o aeroporto? -
perguntou-me a senhora bem vestida.
- Espero que sim – respondi, resgatado do meu
torpor. - Também vou para lá.
A moça ao lado dela, a quem ela chamava de
Maciça, não mostrava nenhum ânimo ou graça. Era miúda e de aspecto frágil, com cabelos curtos e mal cortados. Carregava uma mochilinha de cor laranja, vestia uma
blusa encarnada e uma calça azul piscina. As maçãs do rosto tinham maquiagem em
excesso, de modo que batizá-la de Rouge
seria mais adequado que chamá-la de Maciça.
A caboclinha sorriu quando a senhora disse que
ela ia embarcar para Teresina perto da meia-noite.
- Faz quinze anos – disse, com voz sumida.
Imaginei que devia ter chegado a São Paulo ainda
criança. Puxei conversa, lembrando da boa comida de Teresina. Com o passar do
tempo, comecei a me preocupar. Não teria chegado até ali sem ajuda, seria sua
primeira viagem de avião e ela parecia imaginar o aeroporto de Guarulhos –
imenso e caótico, com seus três terminais - como uma versão levemente ampliada
daquele ponto de parada.
Embarcamos no ônibus. A patroa de Maciça,
desincumbindo-se da responsabilidade por auxiliá-la ao vivo, pediu ao motorista
que a ajudasse na chegada ao aeroporto, ao que ele prontamente se dispôs. Pela
companhia aérea mencionada, o moço antecipou que ela deveria descer no terminal dois, o mesmo destino que o meu. Trocaram umas poucas palavras mais e depois tudo no
ônibus silenciou. Um televisor pregado ao teto - mudo, graças a Deus! - despejava
sobre os passageiros a opressiva onipresença da rede Globo.
Eu havia sentado na mesma poltrona do dia da
chegada, mas ao meu lado não estava agora, como da vez anterior, a filha de
quem eu me havia despedido há minutos, em frente ao Maksoud Plaza, após dois
dias juntos em São Paulo. Estava triste. Por mais que eu quisesse ajudá-la a
encontrar seus caminhos, tudo o que eu fazia sempre me parecia pouco,
insuficiente. Pensava não ter sido o pai que minhas filhas precisavam. Mantinha-me
atento, mas ao largo de suas vidas, ajudava, socorria, opinava, às vezes parecia
intrometer-me em excesso, outras vezes sucumbia ao temor de afrontá-las com
minha presença perturbadora, ora sofria rechaços, ora era bem recebido. Eu
nunca sabia se era bem-vindo. Talvez nunca viesse, de fato, a saber. Cada encontro
era uma batalha de emoções entre o desejo de compartilhar afetos e os freios impostos
pela autoestima claudicante do pai. Eu abandonara o lar com as filhas ainda
pequenas e pagava um preço alto por isso.
O motorista anunciou a parada do terminal dois.
Catei minha mochila, o celular que havia plugado à tomada para recarga da
bateria, e rumei para a porta de saída. Maciça permanecia em seu banco, minha
filha já teria escapado. Viam-se gotas de suor em sua testa e dedos crispados agarrando
a mochilinha laranja.
- Vamos – eu disse. – Eu ajudo.
Ela ergueu-se com pressa e me seguiu, sem dizer
palavra. Encaminhamo-nos aos totens de check-in.
Pedi auxílio para Maciça a uma funcionária da companhia, mas o atendimento foi
burocrático e pouco esclarecedor. Vi que ela permanecia sem entender em que mundo
se havia metido. Tomei ao meu encargo realizar os procedimentos necessários,
difíceis até para os iniciados, e só então fiquei sabendo que se chamava Maria
Cícera da Silva. Vinha do Brasil dos Silvas, é claro.
Imprimi o cartão de embarque e lhe alcancei
boleto e documentos. Ela permaneceu imóvel, aguardando orientações, em meio à
balbúrdia do saguão. Olhava para tudo com ar de espanto: a altura do
pé-direito, os placares luminosos, o vaivém interminável de pessoas e carrinhos
de malas, o uniforme vistoso das atendentes, as meninas te agarrando pela manga
e ofertando brindes.
Perguntei se queria comer algo, ainda dava
tempo, mas ela me disse que não. Decidi levá-la até a área de embarque, achei
que se perderia pelos corredores. Recomendei cuidado com os pertences, aglomerações
são a alegria dos malandros.
– Dessa parte, a patroa me avisou.
Antes de soltá-la em seu barquinho a remos naquele
oceano de gente, sugeri que pedisse ajuda a alguém para chegar ao portão 228,
após a passagem pelo raio-X.
- Raio X?
Ensinei Maciça a ler o painel de chegadas e
partidas para acompanhar possíveis alterações no local de embarque – coisa
corriqueira - e desejei-lhe bom retorno para casa. Endereçou-me um sorriso luminoso
e um "muito obrigada, seu moço".
Foi-se para o interior do terminal, insegura mas
altiva, antevendo encontrar já na sala ao lado as cabras, os cajueiros e os mandacarus
do sertão do Piauí.
Fui tratar do meu check-in e do meu jantar, com novo aperto no coração. Isadora, onde
andaria?
Quando me encaminhava para o portão 201, já meio atrasado, resolvi conferir – invertendo caminhos - se Maciça havia chegado ao seu destino provisório. Não a encontrei. Verifiquei, uma a uma, todas as portas de embarque de 200 a 300, mas não achei a mocinha deslocada, de blusa vermelha e calça azul-piscina, tão perdida, tão paciente, tão diferente da minha menina.
- Miguel da Costa Franco -
Quando me encaminhava para o portão 201, já meio atrasado, resolvi conferir – invertendo caminhos - se Maciça havia chegado ao seu destino provisório. Não a encontrei. Verifiquei, uma a uma, todas as portas de embarque de 200 a 300, mas não achei a mocinha deslocada, de blusa vermelha e calça azul-piscina, tão perdida, tão paciente, tão diferente da minha menina.
- Miguel da Costa Franco -
Que belo textos, esse teu olhar crônico aclara nossos olhos.
ResponderExcluirUma pintura esse teu texto, Miguel. Um retrato dos Brasis. Me emocionei. Um abraço.
ResponderExcluirGracias, Teresa.
ExcluirAh, essa carga do abandono, essa pesada mochila da responsabilidade paterna...
ResponderExcluirMui lindo, Mig!
É duro nadar de poncho, Helinho.
ExcluirQue belo texto, esse teu olhar crônico aclara nossos olhos.
ResponderExcluirGrato, Sérgio.
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