quinta-feira, 22 de junho de 2017

Rondas




Às vezes, me perco. Saio sem rumo e encontro apenas estranhezas, desconfortos.

Antes, bastava vestir-me com simplicidade. Agora, não mais. A guerra espalhou-se para todos os lados e a perda de rumos fez de todos inimigos entre si. O indivíduo venceu, nós perdemos.

Nos bairros hostis que cercam a cidadela dos nobres, as ruelas escuras reservam armadilhas. O medo não dá mais trégua. Eu, um homem socialmente remediado que odeia muros, um reles aspirante a visconde – ou pelo menos barão -, sou aqui fora um mero objeto de caça. Um ser desencontrado e insosso, filhote das sombras que a própria muralha cria. Por isso, me armo com o que tenho: soqueiras, pistolas, canivetes, gás de pimenta. Olhos atentos, espírito alerta, assim me ensinaram no treinamento. Se bobear, já era. C’est fini. Bye bye.

Desvio dos agrupamentos humanos, dos peões de guarda nas esquinas, dos Balas na Cara, dos Manos, dos Amigos dos Amigos. Evito olhar nos olhos de quem seja. Guardo distância das mulheres para evitar disputas possessórias e dos bares com televisão ligada, onde sei que não te encontrarás. Não peço informações a ninguém, pois não quero acentuar meu caráter forasteiro. Entro apenas em estabelecimentos vazios, com as mãos limpas à mostra.

Quando pergunto por ti, evito declinar teu nome verdadeiro. Mostro apenas tua foto, já amarrotada pelo tempo ou por lapsos periódicos de desespero. A quem insiste em saber mais detalhes, te batizo Esperança. Às vezes, em espanhol: Esperanza. Isso enobrece o significado da minha busca e gera mais empatia (por aqui, valorizamos os estrangeirismos, os Wellingtons, os Pablos, os Wesleys, as Nicoles.)

Digo sempre que sumiste sem deixar rastros. Que teus filhos ainda te esperam ansiosos, tantos anos depois. Que tínhamos uma vida tranquila e organizada. Que tua partida foi, para nós, um golpe. Que nosso lar foi atacado por lobos e destroçado.  Digo, também, que não anseio por vinganças, mas, sim, por um pouco da paz do Senhor. Soa bem aos ouvidos crentes que abundam do lado de fora da cidadela, para além das barreiras de segurança. Prometo refazer o que foi desfeito e aceno com mais. Escolados na miséria, alguns perguntam: e as novidades?

É normal que te reconheçam na foto estragada que carrego comigo. Tens traços bem simples, um sorriso largo e olhos de anunciação.

É a Esperança, dizem.

Vi num ônibus, outro dia, anunciou um velhote. Ela estava de verde.

Acho que trabalha no shopping, falou uma cabeleireira, ante meu olhar descrente.

Cuida de crianças num lar da zona norte, arriscou um pastor.

Faz a vida numa boate da Avenida Farrapos, não titubeou um taxista.

É caixa numa lotérica, disse outro qualquer, associando teu nome ao tilintar de moedas.

Segui cada uma dessas pistas e outras centenas mais. A tudo dou ouvidos. Bem podes ter preferido as desventuras de puta à normalidade opaca que eu te oferecia. Ter optado por uma vida mais simples e avessa à promiscuidade da nossa área vip. Também podes ter usado tua imensa capacidade de doação para cuidar de velhos ou de crianças. Vá que tenhas me trocado por outro, ou mesmo por outras utopias, para saciar teus apetites vários! Podes ter fugido, ter sido raptada, abduzida ou morta.

Procuro não pensar em destinos, apenas nos caminhos que percorro por ti.

Velo por meus passos nas calçadas irregulares por onde transito, nas ruas esburacadas e sujas e nos hospitais, mesmo que tua presença ali, Esperança, seja um tanto improvável. Também passeio pelas avenidas poluídas por placares chamativos, mas nunca te vejo.

Trato de conter os ódios e as dúvidas, ainda que mantenha os dedos firmes no cabo da pistola.

Tento emprenhar-me de amor. A vida tem de ser mais do que esse fosso que se agiganta entre nós, todo o santo dia. Estou armado até os dentes e tenho fome. Eu tenho múltiplas fomes.

O quê, em verdade, tu representas, Esperança, minha falsa Esperança? Vivo me perguntando.

Sei que eras muito importante para nós como comunidade. Para mim, a única coisa que importava. Quando te encontrar, talvez sejamos apenas uma sombra débil do que fomos, mas sei que haverá um sopro de vida no teu olhar assustado. Uma chama breve. Um braseiro por reavivar. Por isso persisto com a minha busca esfaimada. Pego uma rua, outra rua, um bairro antigo, um loteamento que surge, uma favela que é expulsa, outra que se instala. Em algum lugar do lado de fora das muralhas da cidadela, eu sei que vou te achar. (Lá dentro, não te esconderias.)

Temo te encontrar em situação imprópria, seduzida ou sufocada por interesses outros, fragilizada ou agonizante. E torço para dominar meu ciúme, meu desânimo, minha raiva, meu rancor, meu exagero, minhas ânsias.

Sempre soube que a vida é uma batalha perdida. Todos nós temos data de vencimento. O que nos resta é lutar até o fim. Deixar algo de bom. Fazer desse mundo um lugar melhor. Sermos lembrados como indivíduos úteis e solidários.

Por desígnio pessoal, toca a mim não desistir, como a ti, talvez, caiba fugir para longe desse passado que te quer manter cativa. Minha jornada pode já não ser a tua, Esperança, e nosso mundo há de ser sempre a soma desse contraponto de interesses e visões. Mas quero que me digas isso tudo, face a face. Sem fugas, pedaladas ou desvios.

Agora, ando com fé. Fez sol durante a tarde e a noite é fresca. Ouço sons de grilos e de gatos que alegremente copulam. A lua crescente me acompanha, aos sorrisos, refletindo-se nas poças d’água. Os telhados cintilam. Uma criança cega correu até mim e contou-me, entusiasmada, que hoje te viu passar. Balbuciava, excitada e rouca, quase gania. Senti o cheiro, dizia, ainda sinto.

De pronto, confiei nela. Aspirei com fervor religioso a brisa suave. Renovei as minhas forças.  Amanhã, de olhos vendados, vou sair bem cedo para te procurar.

                                                                         - Miguel da Costa Franco -

2 comentários:

  1. Triste. Mas vou compor uma resposta no meu blog. Muito triste.

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    1. Podes postar aqui tua resposta. Ou me envia o link para eu ler, se puderes. Grato.

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