Reencontraram-se
no Café Tom Tom, na Cidade Baixa. Continuavam sendo pessoas simples.
Quando João
chegou, Luzia estava sentada numa mesa de canto e mexia com a colher na borra
do café que restara na xícara vazia. Trajava saia preta e uma blusa branca, de
tecido leve, e calçava um par de sapatos também pretos, de salto alto e couro
macio. Prendera os cabelos ruivos num rabo de cavalo e tinha as bochechas afogueadas.
Pareceu-lhe, quando se cumprimentaram, que os olhos antes marcadamente azuis de
Luzia haviam tomado uma tonalidade mais cinzenta. Talvez fosse efeito do
ambiente mal iluminado ou algum viés de preocupação.
João achou
natural vê-la vestindo roupas mais formais do que nos tempos de estudante.
Eram profissionais, agora, e ele também havia aprendido à força a usar paletós
e calças de tecido fino. Alegrou-se que o cabelo preso de Luzia deixasse
exposto o seu pescoço bem torneado e que o decote da blusa não lhe sonegasse as
boas lembranças do passado.
Luzia
achou que ele tinha engordado. Avaliou que estava agora mais formal,
sem a barba revolta e com raias grisalhas no cabelo.
- Me
atrasei, desculpe - ele disse. – Fiquei preso no escritório.
- Não
faz mal, cheguei há pouquinho – ela respondeu.
- Quanto
tempo!
- Pois
é, desde aquela vez na...
- Carla
– completaram em uníssono.
- Foi,
foi lá – disse Luzia. - Ela que me deu teu contato.
-
Seguimos nos falando, às vezes – ele disse.
João
percebeu que Luzia mantinha o antigo hábito de umedecer o lábio superior com um
discreto movimento da ponta da língua, como se fizesse nele uma carícia
cuidadosa.
- Gostei
do teu último livro. Primeiro empaquei um pouco – ela disse, franzindo a testa.
Mas, logo, engatou um sorriso apaziguador, não queria prolongar-se em críticas
inoportunas. - Depois tudo fluiu. Não larguei mais.
- O
próximo vai ser melhor.
- Bobo.
Sempre com esse sarcasmo...
- É a
minha defesa contra a baixa autoestima.
Luzia
olhou-o com desdém.
- Logo
tu! Transou com todas da faculdade.
- Quem
te contou?
-
Elas... Éramos poucas, compartilhávamos tudo.
- Nem
todas – ele disse, mirando-a direto nos seus olhos.
Luzia
fugiu da provocação de João, mas a pele lisinha e alva do pescoço parecia ansiar por
arrepios.
- Eu tive
umas experiências ruins naquela época – confessou.
- Eu
sei.
O
garçom aproximou-se, Luzia consultou o convidado e pediu dois cafés e água.
- Foi
legal, de qualquer jeito - ele disse. – Só faltou mesmo...
- Não
sei o que me deu. Foi um corte. Naquela noite, tudo foi meio inesperado.
- Talvez
eu tenha sido meio...
- Não, não,
fui eu que...
- Eu não
tinha a experiência de hoje – arriscou-se João.
-
Exibido!
- Foi
bom igual. Foi um desvendamento. Lembro que os teus seios eram lindos.
- Ainda
são.
- Tenho
certeza que sim – ele disse, corando um pouco.
- Sei
lá, às vezes, penso que...
A
chegada do garçom com os pedidos cortou-lhe a frase ao meio.
Luzia achou
divertido tê-lo feito perder o prumo com sua pequena ousadia. Pegou sua xícara,
despejou nela uma colher de açúcar, empurrou para o lado a comanda deixada ao centro da mesa, e ficou mexendo o líquido escuro e fumegante.
- Não
consigo tomar sem açúcar.
- Eu me
acostumei sem. Doce, basta a vida – ele completou.
- Engraçadinho...
Como é o teu casamento? – ela quis saber.
- Bom.
Somos bem parceiros. Temos nossos problemas, mas acho que encontrei alguém até
melhor do que eu merecia.
- Que
nem nós. A gente se aguenta bem.
Bebericaram
os cafés. João retomou a palavra.
- Mas,
antes, tu ias dizer...
- Deixa
pra lá.
- Diz.
Às vezes, tu pensas que?
- Sei
lá. É uma coisa... Tu não sente que a gente ficou, assim, meio fuf?
- Meio fuf? – ele debochou.
Luzia
insistiu.
- Incompletos.
Como um rio que encontrou uma barragem. Que ficou freado, num turbilhão.
- Isso
é erotismo de engenheiro.
- Lá
vem ele com os sarcasmos.
Ficaram
ambos em silêncio, provaram outra vez seus cafés.
- Eu também
acho – João disse.
- Também
acha o quê? Que ficamos incompletos?
- Sim,
mas a vida é assim, nunca se tem tudo o que se quer.
- Quanto
conformismo! Eu e o Tito nos permitimos tentar, se for importante para o outro.
Ele
voltou a beber do seu café, usando-o como âncora.
Ela
serviu-se de água. Tinha a boca toda ressequida. Tomou um longo gole. A língua
ágil já não era suficiente para umedecer-lhe os lábios carnudos. João lembrou
como havia sido bom beijá-los vinte e sete anos antes. Procurou pelas palavras
certas, mas não soube como voltar ao assunto. Tinha um pacto consensual a
romper, sua esposa e ele não eram como Luzia e o marido.
-
Preciso ir – ela disse. – Fiquei de encontrar o Tito às cinco. Hoje dei só uma
fugidinha, ele não sabe que estou aqui. Mas volto sozinha em novembro.
Fitou-o,
carinhosa, com seus olhos definitivamente azuis, que tornavam límpido o que há
pouco tinha soado tão contraditório.
- Me
perdoe a pressa, é a alma dos nossos negócios... – ele cantarolou.
- Oh!
Não tem de quê. Eu também só ando a cem... – Luzia devolveu.
- Deixa
que eu pago – João disse, pegando a comanda.
- Em novembro
é minha – disse Luzia, levantando-se e beijando-o na face.
Saiu do
Café Tom Tom, ainda afogueada, e acenou através da janela com ar juvenil.
-
Débito ou crédito? – perguntou-lhe o garçom, com a maquininha a postos.
-
Novembro – João respondeu.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
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