domingo, 11 de junho de 2017

João e Luzia no Café Tom Tom


   Reencontraram-se no Café Tom Tom, na Cidade Baixa. Continuavam sendo pessoas simples.

   Quando João chegou, Luzia estava sentada numa mesa de canto e mexia com a colher na borra do café que restara na xícara vazia. Trajava saia preta e uma blusa branca, de tecido leve, e calçava um par de sapatos também pretos, de salto alto e couro macio. Prendera os cabelos ruivos num rabo de cavalo e tinha as bochechas afogueadas. Pareceu-lhe, quando se cumprimentaram, que os olhos antes marcadamente azuis de Luzia haviam tomado uma tonalidade mais cinzenta. Talvez fosse efeito do ambiente mal iluminado ou algum viés de preocupação.

   João achou natural vê-la vestindo roupas mais formais do que nos tempos de estudante. Eram profissionais, agora, e ele também havia aprendido à força a usar paletós e calças de tecido fino. Alegrou-se que o cabelo preso de Luzia deixasse exposto o seu pescoço bem torneado e que o decote da blusa não lhe sonegasse as boas lembranças do passado.

   Luzia achou que ele tinha engordado. Avaliou que estava agora mais formal, sem a barba revolta e com raias grisalhas no cabelo.

   - Me atrasei, desculpe - ele disse. – Fiquei preso no escritório.
   - Não faz mal, cheguei há pouquinho – ela respondeu.
   - Quanto tempo! 
   - Pois é, desde aquela vez na...
   - Carla – completaram em uníssono.
   - Foi, foi lá – disse Luzia. - Ela que me deu teu contato.
   - Seguimos nos falando, às vezes – ele disse.

   João percebeu que Luzia mantinha o antigo hábito de umedecer o lábio superior com um discreto movimento da ponta da língua, como se fizesse nele uma carícia cuidadosa.
  
   - Gostei do teu último livro. Primeiro empaquei um pouco – ela disse, franzindo a testa. Mas, logo, engatou um sorriso apaziguador, não queria prolongar-se em críticas inoportunas. - Depois tudo fluiu. Não larguei mais.
   - O próximo vai ser melhor.
   - Bobo. Sempre com esse sarcasmo...
   - É a minha defesa contra a baixa autoestima.

   Luzia olhou-o com desdém.

   - Logo tu! Transou com todas da faculdade.
   - Quem te contou?
   - Elas... Éramos poucas, compartilhávamos tudo.
   - Nem todas – ele disse, mirando-a direto nos seus olhos.

   Luzia fugiu da provocação de João, mas a pele lisinha e alva do pescoço parecia ansiar por arrepios.

   - Eu tive umas experiências ruins naquela época – confessou.
   - Eu sei.

   O garçom aproximou-se, Luzia consultou o convidado e pediu dois cafés e água.

   - Foi legal, de qualquer jeito - ele disse. – Só faltou mesmo...
   - Não sei o que me deu. Foi um corte. Naquela noite, tudo foi meio inesperado.
   - Talvez eu tenha sido meio...
   - Não, não, fui eu que...
   - Eu não tinha a experiência de hoje – arriscou-se João.
   - Exibido!
   - Foi bom igual. Foi um desvendamento. Lembro que os teus seios eram lindos.
   - Ainda são.
   - Tenho certeza que sim – ele disse, corando um pouco.
   - Sei lá, às vezes, penso que...

   A chegada do garçom com os pedidos cortou-lhe a frase ao meio.
Luzia achou divertido tê-lo feito perder o prumo com sua pequena ousadia. Pegou sua xícara, despejou nela uma colher de açúcar, empurrou para o lado a comanda deixada ao centro da mesa, e ficou mexendo o líquido escuro e fumegante.

   - Não consigo tomar sem açúcar.
   - Eu me acostumei sem. Doce, basta a vida – ele completou.
   - Engraçadinho... Como é o teu casamento? – ela quis saber.
   - Bom. Somos bem parceiros. Temos nossos problemas, mas acho que encontrei alguém até melhor do que eu merecia.
   - Que nem nós. A gente se aguenta bem.

   Bebericaram os cafés. João retomou a palavra.

   - Mas, antes, tu ias dizer...
   - Deixa pra lá.
   - Diz. Às vezes, tu pensas que?
   - Sei lá. É uma coisa... Tu não sente que a gente ficou, assim, meio fuf?
   - Meio fuf? – ele debochou.

   Luzia insistiu.

   - Incompletos. Como um rio que encontrou uma barragem. Que ficou freado, num turbilhão.
   - Isso é erotismo de engenheiro.
   - Lá vem ele com os sarcasmos.

   Ficaram ambos em silêncio, provaram outra vez seus cafés.

   - Eu também acho – João disse.
   - Também acha o quê? Que ficamos incompletos?
   - Sim, mas a vida é assim, nunca se tem tudo o que se quer.
   - Quanto conformismo! Eu e o Tito nos permitimos tentar, se for importante para o outro.

   Ele voltou a beber do seu café, usando-o como âncora.

   Ela serviu-se de água. Tinha a boca toda ressequida. Tomou um longo gole. A língua ágil já não era suficiente para umedecer-lhe os lábios carnudos. João lembrou como havia sido bom beijá-los vinte e sete anos antes. Procurou pelas palavras certas, mas não soube como voltar ao assunto. Tinha um pacto consensual a romper, sua esposa e ele não eram como Luzia e o marido.

   - Preciso ir – ela disse. – Fiquei de encontrar o Tito às cinco. Hoje dei só uma fugidinha, ele não sabe que estou aqui. Mas volto sozinha em novembro.  

   Fitou-o, carinhosa, com seus olhos definitivamente azuis, que tornavam límpido o que há pouco tinha soado tão contraditório.

   - Me perdoe a pressa, é a alma dos nossos negócios... – ele cantarolou.
   - Oh! Não tem de quê. Eu também só ando a cem... – Luzia devolveu.
   - Deixa que eu pago – João disse, pegando a comanda.
   - Em novembro é minha – disse Luzia, levantando-se e beijando-o na face.

   Saiu do Café Tom Tom, ainda afogueada, e acenou através da janela com ar juvenil.

   - Débito ou crédito? – perguntou-lhe o garçom, com a maquininha a postos.

   - Novembro – João respondeu.

                                                                             - Miguel da Costa Franco -

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