quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

A Equatorial, o borracheiro, o sapateiro e a pedicure

 

   Um dia desses, num restaurante da cidade, me permiti sugerir a um provável diretor da Companhia Equatorial, que contratasse agrônomos para orientar seus funcionários encarregados da poda do arvoredo das ruas. Ele me ouviu. Foi gentil. Se me confundi, pensando que teria relevância hierárquica na empresa alguém que não a têm, renovo por esta via o meu apelo: alô, Equatorial, contrate agrônomos conhecedores de métodos de poda das espécies arbóreas, pelo amor dos nossos filhinhos.

   Em 2022, em entrevista concedida ao Jornal Já, eu dizia que Porto Alegre tem um atrativo fantástico em termos imagéticos, que é a sua arborização. Se lembro bem, a pergunta do entrevistador se referia às razões porque eu escrevia sobre Porto Alegre e a usava como cenário das minhas histórias. Pois bem, a arborização de Porto Alegre, entremeando-se por ruas e avenidas, é algo muito precioso e singular. Nem de longe, esse grau de arborização urbana é a regra nas demais capitais do País. Precisamos cuidar desse bem que nos distingue das outras com muita atenção e carinho.

   Quem não sabe que as árvores consomem grandes volumes de água e colaboram na fixação do solo através de sua robusta malha de raízes, combatendo deslizamentos e enxurradas? Quem não gosta de acordar com a cantoria de passarinhos? Quem sente prazer ao ser recebido numa manhã de novembro com flores vermelhas nos flamboyants e flores brancas nas espirradeiras, buquês amarelos no topo das cássias e dos guapuruvus, cachopas amarelo-ouro nas grevíleas e, por todas as ruas do bairro, fileiras do roxo abundante dos jacarandás? Quem tem o privilégio de deslocar-se à sombra do arvoredo num dia ensolarado e quente ou, ao contrário, tem o dissabor de percorrer longas distâncias na forte soalheira do verão?

   Estudo recente feito por mestrando da UFRGS sobre as ilhas de calor da cidade mostrou significativas diferenças de temperatura do ar entre regiões arborizadas e não arborizadas. De vinte graus centígrados entre a árida zona norte e a fresca zona sul. De dez graus centígrados entre o Parque da Redenção e a Rodoviária. Em se tratando Porto Alegre de um aglomerado urbano em que os verões são quentes e sufocantes, manter saudável nosso arvoredo é uma medida para lá de sensata.

   Entretanto, não é o que se observa por aqui. A Prefeitura, que antes era tão zelosa em protegê-lo, aplicando inclusive multas pesadas a quem fizesse intervenções não autorizadas, abandonou a prática. Ao contrário, associa-se a “parceiros” que derrubam a cobertura verde dos parques para neles implantar unidades comerciais e áreas impermeabilizadas para circulação e estacionamento de veículos. Favorece a derrubada de bosques remanescentes e árvores frondosas para a construção de espigões não aceitos pelo plano diretor, aprovados como malfadados projetos “especiais” por um Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental mais preocupado com os interesses econômicos do que com o meio ambiente e a qualidade de vida da população. E voltando ao tema inicial deste texto, terceiriza para as empresas privatizadas de energia, internet e telefonia a gestão da arborização das ruas, autorizando-as a dar prioridade para a preservação das redes de fios, em detrimento da saúde dos vegetais. O serviço desastroso na gestão da fiação – visível em cada quarteirão – dá mostras do que se pode esperar de tais empresas na administração do arvoredo.

   O Governador Eduardo Leite, a propósito, está enveredando pelo mesmo caminho tortuoso e burro, ao propor legislação nessa linha para o estado todo.

   Espero que a Prefeitura retome a gestão do nosso verde. É preciso planejar melhor a distribuição das espécies pelo ambiente urbano e reservar para as árvores, nas calçadas, mais espaço livre para absorção de água. Outras razões relevantes envolvem a necessidade de poda, como a adequada orientação do crescimento e o desbaste dos ramos frágeis, o controle da erva-de-passarinho e demais pragas e doenças que atacam os vegetais. Também, e não menos importante, a preservação da harmonia estética da paisagem urbana.  

   Espero poder contar com o passaredo e o colorido das flores nas primaveras vindouras e com o frescor das sombras nos verões escaldantes de nossa cidade, com abundância de raízes para absorver excessos hídricos e sustentar o peso das nossas encostas. Só poderão resistir aos temporais e às ventanias árvores saudáveis e bem conduzidas. Extingui-las, ou contribuir para a sua degradação, pode favorecer temporariamente à rede de fios, mas significará, a médio prazo, mais um desastre ambiental a se abater sobre Porto Alegre.

   Você deixaria uma pedicure amputar a sua perna? O sapateiro avaliar a sua próstata? Ou o borracheiro arrancar o seu siso?

   Mal comparando, é isso o que a Equatorial está fazendo com o verde das ruas, ao atribuir o trabalho de poda a trabalhadores sem nenhuma qualificação para tanto. Não tiro o mérito dos profissionais dedicados às unhas, aos pneus ou aos solados de sapatos e sandálias. Cada um sabe de sua especialidade. Mas as árvores podadas pelas equipes da Equatorial, pelo absoluto despreparo de seus funcionários, mostram aleijões, cicatrizes desprotegidas, galhos descascados em apodrecimento e total descaso com a adequada distribuição espacial das copas, o que reverterá em novas quedas de galhos sobre a fiação. E, por certo, garantirá futuros apagões.


- Miguel da Costa Franco -


Publicado também na Matinal / Parêntese 04/12/24

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Pastel

 

   O apelido dele era Pastel. Talvez por causa da pele cor de cobre, ou porque fosse estufadinho e todos gostassem dele...

   Era o faz-tudo da pousada em que eu me hospedara com a família naquelas férias rápidas de inverno. Dirigia o trator que conduzia para lá os hóspedes pelo coqueiral, no longo caminho desde o porto de chegada à ilha. Dava de comer aos pavões, às araras e aos papagaios. Cuidava de afastar das crianças assustadas os guaiamuns e lagartos que circulavam por ali como se fossem turistas despreocupados. Tirava as folhas caídas e varria a areia dos avarandados. Apanhava cocos. Buscava drinques. Instalava redes, espreguiçadeiras e guarda-sóis. Fazia pequenos consertos. Contava histórias. Espalhava citronela pelos chalés para espantar os mosquitos ao entardecer. E estava sempre alegre e sorridente.

   Em contraste com a operosidade de Pastel, o dono da pousada parecia não fazer nada. Um folgado total. Pelas manhãs, ocupava-se apenas de servir de suporte para um imenso chapelão branco e tomar uísque à sombra do cajueiro que guarnecia a trilha do restaurante até o mar. À tarde, sesteava à beira do arvoredo mais massudo dos fundos, numa das redes, sempre a mesma, que Pastel distribuía pelo pátio. À noite, desaparecia cedo. A qualquer hora, quando lhe faziam alguma demanda, mandava procurar pelo Pastel, “é pra isso que eu pago aquele moleque sem-vergonha”.

   Nas suas horas vagas – poucas –, Pastel vendia cocos e mangas pela praia, empurrando um carrinho de mão carregado até a borda, que tomava emprestado do dono da pousada enquanto ele sesteava. Para garantir a cervejinha do dia de folga e dar algum motivo concreto para o azedume do patrão. Já não tinha idade para ser tratado como moleque.

   De seu, tinha apenas dois calções: um verde e um vermelho, este com três listras brancas de cada lado. “Adidas”, ele se exibia orgulhoso. “Ganhei de um paulista atrapalhado, que comprou pequeno demais”.

   Embora as temperaturas de julho sugerissem, às vezes, uma jaqueta ou um moletom, Pastel sequer vestia alguma camiseta. O vento fresco não espanava seu sorriso. A chuva, ou mesmo o sol em demasia, não o molestavam. Seu torso dourado parecia infenso às intempéries. Coxas e braços fortes garantiam agilidade e destreza. Sua musculatura bem moldada brilhava ao sol, exalando vigor e saúde.

   Era visível que as mulheres o olhavam com ares cobiçosos. As nativas eram mais convidadeiras, menos dissimuladas. A cozinheira queria-o para casar. Eu a ouvi provocá-lo despudorada ao vê-lo passar com um gradil de cerveja em cada mão: “Ô, lá em casa...”.

   Também as hóspedes da pousada, libertas das carapaças habituais e, em regra, seminuas em seus biquínis mínimos, mal reprimiam desejos subversivos. Ou sonhavam abertamente com romper as barreiras de classe numa tarde furtiva, e viver com o Pastel uma ousada aventura tropical. A minha companheira, mulher das antigas, antes abstêmia, deu pra enfileirar caipirinhas. Deixou escapar, um pouco ruborizada, que tinha achado aquele moço “muito bem apessoado”.

   Meus filhos menores subiam-lhe pelas pernas e pelas costas, aboletavam-se em sua cacunda, faziam-no galopar pela areia da praia, ou deixavam-se rodopiar como se estivessem pendentes das hastes de algum sombrero mexicano de parque de diversões, até ficarem tontos e cambaleantes.

   E o diabo do Pastel sempre alegre e feliz, transbordando leveza! O sujeito era o máximo.

   Com poucos dias de convívio, os meus guris mostravam com ele a intimidade que já não se permitiam ter comigo. Aos seus olhos, eu seguia sendo ainda o mesmo pai irritadiço e preocupado, que os largava na escola pela manhã, e os revia só à noite, quando estávamos todos exaustos. Que sempre tinha algo a reparar em seu comportamento, uma conta para pagar, um noticiário para ver ou um contrato para ler antes de atendê-los... Que não largava o celular para nada, o tempo todo à disposição do chefe, e mantinha o laptop sempre ligado avaliando estranhezas como debêntures e blue chips... Um homúnculo engravatado, sempre atento aos vincos e nódoas na camisa, que nunca poderia servir de cipó ou de camelo, como se prestava o Pastel... Incapaz de apertar um parafuso ou bem atarrachar uma correntinha no pescoço.

   Que comparação absurda e pretensiosa a minha!

   Deitado numa espreguiçadeira à beira-mar, vendo Pastel raspar da areia com um rastel as fedidas algas em decomposição, eu percebia que, para o futuro do planeta, eu me transformara num ser absolutamente descartável pela minha submissão à urbanidade dos escritórios. Sentia um pouco de frio, vestindo apenas a sunga, um boné sobre a careca e meus ridículos óculos escuros, com logomarca da Coca-Cola. Com minhas carnes flácidas besuntadas de protetor solar para me salvar da inclemência do sol, e com a minha lombar deteriorada pelo sedentarismo reclamando da curvatura exagerada do sentante, aquele múltiplo Pastel fazia-me encarar uma sensação crescente de inutilidade. Forçava-me a reconhecer a inevitável inferioridade do meu físico, minha serventia pouca para a sobrevivência da humanidade e minha degradação progressiva.

   Não à toa não via pousarem sobre mim os olhos gulosos que as mulheres espalhadas a minha volta dirigiam para ele.

   Enquanto garantia ao meu hospedeiro folgado do chapelão branco mais uma dezena de diárias equivalentes ao salário mensal que ele reinava para pagar ao seu adorável faz-tudo, eu ficava me perguntando o que fizera da minha vida, afinal.

   Que carreirista imbecil eu me tornara! Que poço de incapacidades mundanas me fazia invejar a leveza de um semiescravizado trabalhador braçal?

   Por que não largava tudo de uma vez, e tentava viver como o Pastel, íntimo da natureza e da alegria, vendendo cocos e mangas nas areias ensolaradas da Bahia?


- Miguel da Costa Franco - 


Texto finalista do Prêmio Ruth Guimarães de Crônicas - 2024, da União Brasileira de Escritores

https://ube.org.br/finalistas-premio-ruth-guimaraes-de-cronicas-2024/?fbclid=IwY2xjawEjn7RleHRuA2FlbQIxMAABHR2GPAVmAMZPqW2AP7YwGoJWkxahZNSWtSbCuCrVItwA7Kzk_57luIxJ7Q_aem_tleNDZv8zPCcz5GXH-r0Ug