O apelido dele era Pastel. Talvez por causa da pele cor de cobre, ou
porque fosse estufadinho e todos gostassem dele...
Era o faz-tudo da pousada em que eu me hospedara com a família naquelas
férias rápidas de inverno. Dirigia o trator que conduzia para lá os hóspedes
pelo coqueiral, no longo caminho desde o porto de chegada à ilha. Dava de comer
aos pavões, às araras e aos papagaios. Cuidava de afastar das crianças
assustadas os guaiamuns e lagartos que circulavam por ali como se fossem
turistas despreocupados. Tirava as folhas caídas e varria a areia dos
avarandados. Apanhava cocos. Buscava drinques. Instalava redes,
espreguiçadeiras e guarda-sóis. Fazia pequenos consertos. Contava histórias.
Espalhava citronela pelos chalés para espantar os mosquitos ao entardecer. E
estava sempre alegre e sorridente.
Em contraste com a operosidade de Pastel, o dono da pousada parecia não
fazer nada. Um folgado total. Pelas manhãs, ocupava-se apenas de servir de
suporte para um imenso chapelão branco e tomar uísque à sombra do cajueiro que
guarnecia a trilha do restaurante até o mar. À tarde, sesteava à beira do arvoredo
mais massudo dos fundos, numa das redes, sempre a mesma, que Pastel distribuía
pelo pátio. À noite, desaparecia cedo. A qualquer hora, quando lhe faziam
alguma demanda, mandava procurar pelo Pastel, “é pra isso que eu pago aquele
moleque sem-vergonha”.
Nas suas horas vagas – poucas –, Pastel vendia cocos e mangas pela
praia, empurrando um carrinho de mão carregado até a borda, que tomava
emprestado do dono da pousada enquanto ele sesteava. Para garantir a cervejinha
do dia de folga e dar algum motivo concreto para o azedume do patrão. Já não
tinha idade para ser tratado como moleque.
De seu, tinha apenas dois calções: um verde e um vermelho, este com três
listras brancas de cada lado. “Adidas”, ele se exibia orgulhoso. “Ganhei de um
paulista atrapalhado, que comprou pequeno demais”.
Embora as temperaturas de julho sugerissem, às vezes, uma jaqueta ou um
moletom, Pastel sequer vestia alguma camiseta. O vento fresco não espanava seu
sorriso. A chuva, ou mesmo o sol em demasia, não o molestavam. Seu torso
dourado parecia infenso às intempéries. Coxas e braços fortes garantiam
agilidade e destreza. Sua musculatura bem moldada brilhava ao sol, exalando
vigor e saúde.
Era visível que as mulheres o olhavam com ares cobiçosos. As nativas
eram mais convidadeiras, menos dissimuladas. A cozinheira queria-o para casar.
Eu a ouvi provocá-lo despudorada ao vê-lo passar com um gradil de cerveja em
cada mão: “Ô, lá em casa...”.
Também as hóspedes da pousada, libertas das carapaças habituais e, em
regra, seminuas em seus biquínis mínimos, mal reprimiam desejos subversivos. Ou
sonhavam abertamente com romper as barreiras de classe numa tarde furtiva, e
viver com o Pastel uma ousada aventura tropical. A minha companheira, mulher
das antigas, antes abstêmia, deu pra enfileirar caipirinhas. Deixou escapar, um
pouco ruborizada, que tinha achado aquele moço “muito bem apessoado”.
Meus filhos menores subiam-lhe pelas pernas e pelas costas,
aboletavam-se em sua cacunda, faziam-no galopar pela areia da praia, ou
deixavam-se rodopiar como se estivessem pendentes das hastes de algum sombrero
mexicano de parque de diversões, até ficarem tontos e cambaleantes.
E o diabo do Pastel sempre alegre e feliz, transbordando leveza! O
sujeito era o máximo.
Com poucos dias de convívio, os meus guris mostravam com ele a
intimidade que já não se permitiam ter comigo. Aos seus olhos, eu seguia sendo
ainda o mesmo pai irritadiço e preocupado, que os largava na escola pela manhã,
e os revia só à noite, quando estávamos todos exaustos. Que sempre tinha algo a
reparar em seu comportamento, uma conta para pagar, um noticiário para ver ou
um contrato para ler antes de atendê-los... Que não largava o celular para
nada, o tempo todo à disposição do chefe, e mantinha o laptop sempre ligado
avaliando estranhezas como debêntures e blue chips... Um homúnculo engravatado,
sempre atento aos vincos e nódoas na camisa, que nunca poderia servir de cipó
ou de camelo, como se prestava o Pastel... Incapaz de apertar um parafuso ou
bem atarrachar uma correntinha no pescoço.
Que comparação absurda e pretensiosa a minha!
Deitado numa espreguiçadeira à beira-mar, vendo Pastel raspar da areia
com um rastel as fedidas algas em decomposição, eu percebia que, para o futuro
do planeta, eu me transformara num ser absolutamente descartável pela minha
submissão à urbanidade dos escritórios. Sentia um pouco de frio, vestindo
apenas a sunga, um boné sobre a careca e meus ridículos óculos escuros, com
logomarca da Coca-Cola. Com minhas carnes flácidas besuntadas de protetor solar
para me salvar da inclemência do sol, e com a minha lombar deteriorada pelo
sedentarismo reclamando da curvatura exagerada do sentante, aquele múltiplo
Pastel fazia-me encarar uma sensação crescente de inutilidade. Forçava-me a
reconhecer a inevitável inferioridade do meu físico, minha serventia pouca para
a sobrevivência da humanidade e minha degradação progressiva.
Não à toa não via pousarem sobre mim os olhos gulosos que as mulheres
espalhadas a minha volta dirigiam para ele.
Enquanto garantia ao meu hospedeiro folgado do chapelão branco mais uma
dezena de diárias equivalentes ao salário mensal que ele reinava para pagar ao
seu adorável faz-tudo, eu ficava me perguntando o que fizera da minha vida,
afinal.
Que carreirista imbecil eu me tornara! Que poço de incapacidades
mundanas me fazia invejar a leveza de um semiescravizado trabalhador braçal?
Por que não largava tudo de uma vez, e tentava viver como o Pastel,
íntimo da natureza e da alegria, vendendo cocos e mangas nas areias ensolaradas
da Bahia?
- Miguel da Costa Franco -
Texto finalista do Prêmio Ruth Guimarães de Crônicas - 2024, da União Brasileira de Escritores