quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Pastel

 

   O apelido dele era Pastel. Talvez por causa da pele cor de cobre, ou porque fosse estufadinho e todos gostassem dele...

   Era o faz-tudo da pousada em que eu me hospedara com a família naquelas férias rápidas de inverno. Dirigia o trator que conduzia para lá os hóspedes pelo coqueiral, no longo caminho desde o porto de chegada à ilha. Dava de comer aos pavões, às araras e aos papagaios. Cuidava de afastar das crianças assustadas os guaiamuns e lagartos que circulavam por ali como se fossem turistas despreocupados. Tirava as folhas caídas e varria a areia dos avarandados. Apanhava cocos. Buscava drinques. Instalava redes, espreguiçadeiras e guarda-sóis. Fazia pequenos consertos. Contava histórias. Espalhava citronela pelos chalés para espantar os mosquitos ao entardecer. E estava sempre alegre e sorridente.

   Em contraste com a operosidade de Pastel, o dono da pousada parecia não fazer nada. Um folgado total. Pelas manhãs, ocupava-se apenas de servir de suporte para um imenso chapelão branco e tomar uísque à sombra do cajueiro que guarnecia a trilha do restaurante até o mar. À tarde, sesteava à beira do arvoredo mais massudo dos fundos, numa das redes, sempre a mesma, que Pastel distribuía pelo pátio. À noite, desaparecia cedo. A qualquer hora, quando lhe faziam alguma demanda, mandava procurar pelo Pastel, “é pra isso que eu pago aquele moleque sem-vergonha”.

   Nas suas horas vagas – poucas –, Pastel vendia cocos e mangas pela praia, empurrando um carrinho de mão carregado até a borda, que tomava emprestado do dono da pousada enquanto ele sesteava. Para garantir a cervejinha do dia de folga e dar algum motivo concreto para o azedume do patrão. Já não tinha idade para ser tratado como moleque.

   De seu, tinha apenas dois calções: um verde e um vermelho, este com três listras brancas de cada lado. “Adidas”, ele se exibia orgulhoso. “Ganhei de um paulista atrapalhado, que comprou pequeno demais”.

   Embora as temperaturas de julho sugerissem, às vezes, uma jaqueta ou um moletom, Pastel sequer vestia alguma camiseta. O vento fresco não espanava seu sorriso. A chuva, ou mesmo o sol em demasia, não o molestavam. Seu torso dourado parecia infenso às intempéries. Coxas e braços fortes garantiam agilidade e destreza. Sua musculatura bem moldada brilhava ao sol, exalando vigor e saúde.

   Era visível que as mulheres o olhavam com ares cobiçosos. As nativas eram mais convidadeiras, menos dissimuladas. A cozinheira queria-o para casar. Eu a ouvi provocá-lo despudorada ao vê-lo passar com um gradil de cerveja em cada mão: “Ô, lá em casa...”.

   Também as hóspedes da pousada, libertas das carapaças habituais e, em regra, seminuas em seus biquínis mínimos, mal reprimiam desejos subversivos. Ou sonhavam abertamente com romper as barreiras de classe numa tarde furtiva, e viver com o Pastel uma ousada aventura tropical. A minha companheira, mulher das antigas, antes abstêmia, deu pra enfileirar caipirinhas. Deixou escapar, um pouco ruborizada, que tinha achado aquele moço “muito bem apessoado”.

   Meus filhos menores subiam-lhe pelas pernas e pelas costas, aboletavam-se em sua cacunda, faziam-no galopar pela areia da praia, ou deixavam-se rodopiar como se estivessem pendentes das hastes de algum sombrero mexicano de parque de diversões, até ficarem tontos e cambaleantes.

   E o diabo do Pastel sempre alegre e feliz, transbordando leveza! O sujeito era o máximo.

   Com poucos dias de convívio, os meus guris mostravam com ele a intimidade que já não se permitiam ter comigo. Aos seus olhos, eu seguia sendo ainda o mesmo pai irritadiço e preocupado, que os largava na escola pela manhã, e os revia só à noite, quando estávamos todos exaustos. Que sempre tinha algo a reparar em seu comportamento, uma conta para pagar, um noticiário para ver ou um contrato para ler antes de atendê-los... Que não largava o celular para nada, o tempo todo à disposição do chefe, e mantinha o laptop sempre ligado avaliando estranhezas como debêntures e blue chips... Um homúnculo engravatado, sempre atento aos vincos e nódoas na camisa, que nunca poderia servir de cipó ou de camelo, como se prestava o Pastel... Incapaz de apertar um parafuso ou bem atarrachar uma correntinha no pescoço.

   Que comparação absurda e pretensiosa a minha!

   Deitado numa espreguiçadeira à beira-mar, vendo Pastel raspar da areia com um rastel as fedidas algas em decomposição, eu percebia que, para o futuro do planeta, eu me transformara num ser absolutamente descartável pela minha submissão à urbanidade dos escritórios. Sentia um pouco de frio, vestindo apenas a sunga, um boné sobre a careca e meus ridículos óculos escuros, com logomarca da Coca-Cola. Com minhas carnes flácidas besuntadas de protetor solar para me salvar da inclemência do sol, e com a minha lombar deteriorada pelo sedentarismo reclamando da curvatura exagerada do sentante, aquele múltiplo Pastel fazia-me encarar uma sensação crescente de inutilidade. Forçava-me a reconhecer a inevitável inferioridade do meu físico, minha serventia pouca para a sobrevivência da humanidade e minha degradação progressiva.

   Não à toa não via pousarem sobre mim os olhos gulosos que as mulheres espalhadas a minha volta dirigiam para ele.

   Enquanto garantia ao meu hospedeiro folgado do chapelão branco mais uma dezena de diárias equivalentes ao salário mensal que ele reinava para pagar ao seu adorável faz-tudo, eu ficava me perguntando o que fizera da minha vida, afinal.

   Que carreirista imbecil eu me tornara! Que poço de incapacidades mundanas me fazia invejar a leveza de um semiescravizado trabalhador braçal?

   Por que não largava tudo de uma vez, e tentava viver como o Pastel, íntimo da natureza e da alegria, vendendo cocos e mangas nas areias ensolaradas da Bahia?


- Miguel da Costa Franco - 


Texto finalista do Prêmio Ruth Guimarães de Crônicas - 2024, da União Brasileira de Escritores

https://ube.org.br/finalistas-premio-ruth-guimaraes-de-cronicas-2024/?fbclid=IwY2xjawEjn7RleHRuA2FlbQIxMAABHR2GPAVmAMZPqW2AP7YwGoJWkxahZNSWtSbCuCrVItwA7Kzk_57luIxJ7Q_aem_tleNDZv8zPCcz5GXH-r0Ug



sábado, 28 de setembro de 2024

Eu sei quem você é

  

   Válber e Válter distinguiam-se, à primeira impressão, apenas pela quarta letra do nome. Eram gêmeos idênticos. Para contornarem a patetice dos pais, que lhes garantiram um incômodo eterno batizando-os com nomes similares, que soavam como latidos de pitbull – Válber, Válter –, deram corpo e alma aos apelidos infantis de Vabe e Valtinho.

   Rebeca começou a namorar com Valtinho ao final da faculdade, quando os gêmeos já haviam abandonado o mau hábito juvenil de experimentar as namoradas um do outro. Um tanto porque haviam crescido, e compartilhar parceiras à sua revelia não é coisa que se faça, outro tanto porque Vabe foi estudar Oceanologia em Rio Grande e Valtinho optou pelo curso de Audiovisual em São Leopoldo.

   Os gêmeos muito unidos se afastaram um pouco nesse período; começaram a ganhar independência. Ainda assim, na presença do irmão, Rebeca percebia no companheiro um comportamento estranho, vacilante. Algo de subserviência, uma dubiedade, que não sabia bem como explicar. Apesar da cumplicidade visceral entre os dois, Valtinho ficava menos solto, meio calado, havia sempre certa tensão em seu olhar.

   Nos momentos íntimos, quando faziam sexo, Rebeca sentia que soprar no ouvido de Valtinho “eu sei quem você é” de algum modo o tranquilizava. Mais do que isso: animava-o, dava-lhe um vigor adicional. Ele crescia, digamos. Rebeca logo entendeu que aquela cochichadinha sutil ao pé da orelha, quando ele se enfiava nela, trazia-lhe recompensas extras. O sussurro energético passou a compor os ritos sexuais do casal, até a confiança de Valtinho se consolidar e ele não precisar mais daquilo para dar substância ao seu desejo. Restou-lhes o cochicho como um mantra lúdico, provocativo. Mais uma vez, Rebeca tinha feito jus ao significado de seu nome em hebraico: aquela que une.

   Depois que os dois foram morar juntos num apartamento da Jerônimo de Ornelas, a mãe de Valtinho, vencida em seus princípios, abriu-lhes o acesso à casa de praia. Tinha um belo casarão em Atlântida, com uma infinidade de quartos, e foi pragmática. Preferiu aceitar as modernices do filho do que tê-lo longe de si por todo o verão. Seria melhor se estivessem casados, mas... O que se podia fazer?

   Assim, a oblíqua e anárquica Rebeca – para muitos, encantadora – foi aceita na família do parceiro. Conquistou o direito a um quarto de casal privativo, com banheiro anexo, e cama king size com um delicioso colchão de molas, que, por conveniência, rangia pouco. Diante de tal ganho de liberdade, o casalzinho passou a visitar Atlântida, com frequência, nos finais de semana do verão.

   No feriado de dois de fevereiro, Vabe também apareceu para partilhar os confortos da casa de veraneio, vindo de Rio Grande, onde era agora professor na universidade. Jantaram juntos no dia da chegada, os quatro da família, mais Rebeca. Conversaram muito, divertiram-se, jogaram cartas até bem tarde, os irmãos – como todos os irmãos – trocando farpas e provocações, com cobranças, às vezes, enigmáticas para os demais.  

   Na manhã seguinte, Rebeca foi mais cedo do que os outros para a beira do mar. Queria aproveitar as horas de sol suave para se bronzear e fumar seu baseado tranquilizador. Quando chegaram os outros – os irmãos gêmeos, lado a lado – ela percebeu que, usando as sungas iguais com que a mãe os tinha presenteado no Natal, os dois não pareciam tão idênticos, assim.

   Passou aquela manhã se divertindo com a novidade. Quando queria chamar algum deles, evitava recorrer aos sinais ou trejeitos já convencionados em seu íntimo para reconhecê-los. Baixava os olhos e conferia a identidade de cada um pelo volume acomodado na sunga. Uma distinção inequívoca. Vê-los jogar frescobol, bonitos e atléticos – um à direita, outro à esquerda –, deu-lhe mais espaço para a observação cuidadosa, sob a proteção dos óculos escuros. A coisa era incrível. O cunhado carregava um instrumento de respeito atravessado no calção. Gigante. Perto dele, o tico do Valtinho, que ela conhecia tão bem, parecia um assustado camundongo. Avaliou, num inquietante devaneio de luxúria, que tivera muito azar em conhecer primeiro o gêmeo errado.

   Rebeca corou, quando Vabe lhe ofereceu um churro de doce de leite. Recusou a oferenda, invadida por um súbito pudor. Ela estava sentada numa cadeira de praia, ele de pé, enorme, ao seu lado. Vabe percebeu que algo nela estava um pouco fora de lugar: o olhar baixo e arredio, a voz um tanto esganiçada e tremida, a pele arrepiada apesar do calor, os mamilos pontudos marcando o tecido do biquíni grená. Fossem bichos, ele farejaria algo excitante e inesperado no ar.

   Não se refrescaram no mar. A água estava cor de chocolate, fedendo a algas.

   De volta para casa, dedicaram-se às caipirinhas e ao churrasco, com muita cerveja gelada. Depois, como sobremesa, atiraram-se sobre uma maravilhosa cassata de chocolate com leite condensado, a especialidade da sogra.  Por três vezes, durante o almoço, quando queria pedir para alcançar-lhe algo, Vabe acariciou suavemente a coxa de Rebeca.

   A caminhada até o mar e os esportes de praia, a soalheira, a bebida farta e a refeição pesada, tudo isso em sequência exigiu deles uma boa sesta durante a tarde. A família se dispersou aos poucos. Vabe adonou-se da rede da varanda, os anfitriões foram deitar no seu quarto e Valtinho acomodou-se no sofá da sala, onde batia uma brisa agradável. Rebeca, a mais irrequieta, encarregou-se da louça suja.

   Depois de ajeitar a cozinha, com todos dormindo, transitou indócil – mais vezes do que o necessário –, entre a exuberância portentosa da rede e o acanhamento mignon do sofá. Prolongava as análises sobre quem era quem, encenando um teatrinho de vaivém entre a sala e a varanda para o caso de ser vista. Os irmãos usavam cortes de cabelo iguais, tinham as mesmas covinhas na face, os dedos longos, a pele clara e o corpo enxuto. Sentindo crescer o seu frisson, contemplou o gêmeo refestelado na rede, que, diferente do outro, não escondia na sunga apenas um tímido camundonguinho. Ela seguia perplexa com a descoberta. Ouriçada. Ansiosa.

   Cutucou Valtinho, no sofá, convidando-o a sestear com ela no camão king size.

    – Eu sei quem você é – provocou-o, sussurrando ao pé do seu ouvido.

   Ele soltou um bufo cavernoso, alcoólico, e se acomodou melhor no divã que elegera para o seu descanso.

   Rebeca desistiu da companhia e recolheu-se sozinha ao quarto. Encostou a porta, sem chaveá-la, para o caso de o companheiro resolver entrar. Despiu-se da saída de banho e do biquíni apertado. Deitou-se de lado, nua, a cabeça repousando sobre o braço dobrado, e abraçou-se ao travesseiro de Valtinho. Era como preferia dormir, quando estava só.

   A brisa do mar fazia dançarem as cortinas de voil e, flutuando no balanço desse ar movediço, ela fechou as pálpebras, acalmou os instintos e adormeceu. Teve umas visões estranhas. Sonhou com trens e locomotivas fumegantes, manobrando na estação. Ouviu abrir-se a porta da cabine de seu vagão, um breve rangido de molas a seu lado e, talvez, o cobrador falando com ela, pedindo-lhe algo.

   Despertou-se com carícias suaves nas suas costas. Emergindo das lonjuras do sono, ouviu novamente uma voz enrouquecida, que bem poderia ser a do ferroviário de seus sonhos, lhe perguntando:

   – Eu posso?

   O toque em sua pele era gostoso. Ela apenas balançou a cabeça. Ele podia. Sentiu em seguida o roçar de lábios sutis entre as escápulas desnudas e uma mão carinhosa a lhe percorrer a coxa exposta. Arrepiou-se. Desde a beira da praia, ansiava por aquilo. Aos poucos, começou a umedecer-se. Passara o dia todo assim: respondendo de pronto a qualquer estímulo. Resolveu abrir caminhos para quem tinha, agora, se grudado às suas costas como uma grande ventosa aquecida e lhe pressionava o sexo com intensidade e volúpia. Dobrou a perna e facilitou-lhe os acessos.

   Quando ele a penetrou, preencheu-a de um jeito tal que Rebeca nunca havia experimentado antes. Ela sentiu que estufava. Quase faltou-lhe o ar. Freou o quadril do outro com a mão livre. Não por medo. Sabia das proezas de que era capaz a anatomia feminina. Foi apenas pela surpresa. Pelo detalhe. Passou por um momento de débil relutância, um pequeno dilema moral, mas preferiu fechar os olhos e se entregar ao prazer inegável que sentia. Relaxou. Moveu em direção à cabeceira da cama a mão que detivera o outro e repetiu, com entusiasmo sanguíneo, a autorização que já lhe dera antes:

   – Pode, pode...

   Uma fração de tempo depois, animou-se a olhar por sobre o ombro para o corpo cheirando a maresia que acabara de fundir-se ao seu. Aceitou o risco de fazê-lo inflar-se ainda mais. Com o fio de voz que lhe restava, sussurrou ofegante o seu mantra conhecido, para quem tentava dividi-la em duas:

   – Eu sei quem você é.

   Quando Rebeca acordou de novo, feliz e satisfeita na lânguida solidão do quarto, o céu estava róseo e um cheiro bom de café entrava pela porta entreaberta.

   – Fiz um bolinho de laranja pra vocês – ouviu a sogra anunciar.

   Tomou uma boa ducha e voltou imaculada para a sala. Como sabia há muito tempo, ela era aquela que une.


                  – Miguel da Costa Franco 


Texto publicado na Revista Parêntese nº 245, de 28/09/2024

https://www.matinaljornalismo.com.br/parentese/conto/eu-sei-quem-voce-e/?login=success