sábado, 14 de março de 2020

Quando morre um cavalo

Texto publicado na edição de 14/15 de março da revista

   

   A edição da Matinal News, de 28 de fevereiro, registra a morte em serviço de uma égua do 4º Regimento de Polícia Montada, momentos antes da partida entre Internacional e Tolima, classificatória para a Copa Libertadores da América de 2020. A reportagem cita a simpática homenagem prestada pela Brigada Militar através da rede instagram, em que aquela instituição dedica ao animal estrofes de um poema de Chiquito e Bordoneio, grupo regionalista gaúcho:
Quando morre um cavalo
Até o céu fica nublado
Uma cruz marca a coxilha
E o dono sofre calado.

   Uma análise preliminar indicou morte por lesão cardíaca.  De saída, associei este infarto equino aos fortes receios que inundavam o ar respirado pela égua, no entorno do Gigante da Beira-rio, em razão da precariedade do Inter de Coudet. Mas, não. A matéria da Matinal seguia rumos mais sutis e inusitados: “(...) suspeita-se que o pobre coração do animal sofria mesmo era de saudade (...)”. Seu companheiro de trabalho, de longa data, um sargento, havia se aposentado uma semana antes. Aventava-se ser um caso de “coração partido”.

   Que bonito isto, pensei. E a notícia me comoveu por vários motivos.

   Alimentei minhas fantasias infantis com incontáveis filmes de bangue-bangue, em que sempre se somava à bravura do mocinho a agilidade, a resistência e a esperteza de sua montaria. Criado no sul do continente americano, acompanhei inúmeros desfiles a cavalo a cada Semana Farroupilha e vivi com alguma intensidade a revalorização da cultura campeira pela via dos festivais da canção nativista. Mais ainda, desenvolvi uma trajetória profissional vinculada ao campo e pude usufruir da companhia de amigos e primos fazendeiros com quem exercitei a minha versão de centauro dos pampas. Reconheço, pois, o vínculo forte que deve ter se estabelecido entre o sargento e sua égua. Parceria. Cuidado. Confiança. Amor. Temas dignos de serem cultuados e que, de fato, costumam povoar a escrivaninha dos poetas. Corações partidos, aliás, também.

   Gostei de ver policiais militares voltando-se a explicar as dores do mundo através da poesia, algo tão incomum de se ver associado a figuras duronas, que sempre estão a cultivar certa aspereza no trato, e costumam preservar-se de intimidades. Pois a poesia aproxima. A literatura ajuda a compreender os outros seres humanos e suas motivações. Após ler a notícia, pus-me a sonhar com o dia em que teremos uma polícia amistosa e sensível, a quem se possa recorrer com confiança e naturalidade, sem temor ou risco de passarmos de vítimas a delinquentes após qualquer breve troca de impressões.

   Comovi-me, também, com as homenagens de outros militares à “colega” morta em serviço. Muitos homens de farda, em comentários no instagram, bateram continência para o animal pelos tantos anos de trabalho prestados à segurança pública, dedicando-lhe as honras que usualmente apenas dirigiriam a um verdadeiro colega abatido no cumprimento do dever. A égua teve reconhecido e glorificado o seu status de longeva e dedicada servidora pública “associada”.

   Isto não é pouco. Vivemos tempos de muita maledicência pairando sobre os funcionários públicos, maltratados por atrasos salariais, reformas nas leis trabalhistas e previdenciárias, falta de equipamentos apropriados, dificuldades de aperfeiçoamento profissional, dinamitação de seus planos de carreira e tantas outras ações indignas de quem só pensa em reduzir o Estado, de modo que ele sirva apenas para si e para os seus. E isto também atinge a Brigada, junto com milhares de dedicados servidores anônimos.

   Mas justamente aí uma coisa me incomodou. Porque as polícias militares, no Brasil afora, vêm sendo utilizadas como instrumento de coerção dos movimentos sociais por estes que almejam um Estado privatizado para si e para os seus. Witzel, no Rio, a quer mirando na cabecinha dos cariocas. Richa usou-a para agredir com violência professores paranaenses em greve. As arbitrariedades da polícia de Alckmin catapultaram as mobilizações de 2013 em São Paulo. Bombas de gás lacrimogêneo foram jogadas contra simples foliões na Cidade Baixa, em Porto Alegre, uns dias atrás. A polícia militar baiana é acusada de “queimar” o arquivo Adriano da Nóbrega, depositário de segredos perigosos para o establishment bolsonarista.

   São muitos exemplos de esquadrões treinados para colocar-se contra as demandas legítimas das populações empobrecidas e usurpadas em seus direitos. Contra o povo do nosso País. Em especial, em seu direito de lutar por um Estado garantidor de princípios civilizatórios básicos, como o acesso à saúde, educação, moradia, terra, saneamento, meio ambiente sadio, liberdade de manifestação e expressão, trabalho digno, direito de ir e vir, segurança e inviolabilidade dos lares. Em suma, trata-se de polícias que atuam para reprimir, não para garantir a palavra aos desvalidos. Que se portam como defensoras acríticas e violentas de quem promove a degradação da vida cidadã, mesmo que alguns dos indivíduos em suas fileiras assim não queiram - talvez aí incluídos os seus poetas.

   Temos as polícias que mais matam. São milhares as mortes ditas acidentais, de sua responsabilidade. Notícias que se têm das polícias militares, muitas vezes, transitam até pelo envolvimento com grupos organizados de extermínio dos “culpados de sempre”, normalmente a população negra e pobre. Os tais justiçamentos.

   Vou lhes dizer, enfim, o que me incomodou de verdade e me fez passar do deleite para a apreensão na notícia da Matinal. A égua falecida, alvo de homenagens e manifestações de apreço e, até, de um surpreendente poema assinado pela instituição, era chamada de Justiceira. Jus-ti-cei-ra. Justiceiro ou justiceira são termos que remetem, normalmente, àqueles ou àquelas que se arrogam o direito de fazer justiça pelas próprias mãos. Tudo o que não se deseja de um agente público, num estado democrático de direito.

   Que tristeza, Justiceira! Vá em paz. Espero, de verdade, que durante a tua jornada não tenham te transformado em instrumento de perversão da justiça, como quer o teu nome.

   Morreste, e o teu dono sofrerá calado, como diz o poema. Mas vale lembrar que o teu dono não era o sargento que te montava, nem o batalhão que te alimentava, mas, sim, todo o povo gaúcho, trabalhador ou desempregado, urbano ou rural, em suas múltiplas variações de cor, raça, origem, gênero, opção religiosa, ideológica ou sexual. Teu verdadeiro dono, cujo sofrimento calado se deve, muitas vezes, ao opressivo tacão militar, espera por uma polícia eficiente contra os criminosos, sim, mas companheira dos cidadãos e respeitadora de seus direitos. Que lamente qualquer ferimento ou morte.

   Desejo que o poema que mereceste como epitáfio, Justiceira, instigue aqueles que te batizaram – não foi culpa tua! - a refletir sobre o papel que exercem na sociedade. Que a poesia, ainda brotando em espasmos na caserna, devolva às corporações militares a empatia pelo cidadão comum.

          - Miguel da Costa Franco -

Um comentário:

  1. Belo texto, Miguel! Bom argumento, palavras bem postasce cumprindo seu dever de critica e ironia. So discordei das motivações dos movimentos de 2013...abraco grande.

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