Para aquele Agenor encarapitado no muro, encorajando-se
a abandonar como clandestino a cidadela, só restava agora descobrir caminhos novos
na extensa trama de vielas dos bairros populares, estendidos diante de si a
perder de vista. Dentro dos muros, a opção oferecida para ele era o abate.
Atingira os oitenta anos, havia perdido o direito à manutenção governamental e
o povo da quina Paz e Harmonia, a quem cabia decidir por sua sobrevivência na
comunidade, tinha preferido abdicar de sua companhia, numa eleição limpa e
serena: 345 votos a 72. Assim determinavam as regras criadas pelo tribunal das
corporações que governava tudo, com seus monstruosos preceitos de produtividade,
assepsia social e autopreservação. Havia sido a corte a idealizadora do sistema
de coabitações que organizava em grupos de quinhentos os velhotes improdutivos
para viverem ali o fim de seus dias.
Agenor nunca fora muito popular, e agora pagava
o preço de sua antipatia. Ficara feliz com os setenta votos que havia angariado,
além dos dele e de Lucinda. Era mais do que merecia daquela comunidade, com
quem se batera tanto, de seres anestesiados ante o poder absoluto das
corporações.
Sabedora por antecipação da sentença que
aguardava o outro, Lucinda o havia ajudado a fugir, como já fizera com muitos
condenados. Sempre ela, a boa Lucinda. Não queria saber de abates nos
recintos da sua quina. Era uma das poucas amigas que ele mantinha após os dez
anos regulamentares no co-housing Paz
e Harmonia. Ela mesma havia tratado de surrupiar para ele a arma do porteiro. Ainda
que ali fosse a representante máxima do sistema, a poderosa ordenadora achava
os abates de idosos uma excrescência. Todos na comunidade suspeitavam que ela
colaborasse para amainar o destino dos excluídos, mas ninguém a condenava por
isso. Sua atitude era, afinal, tranquilizadora.
No momento da fuga, Agenor levava consigo apenas
uma esteira grossa de plástico-bolha, uma muda de roupas, a pistola roubada, uma
garrafa d’água, um canivete multiusos, que tinha acompanhado toda sua trajetória
adulta na área vip, e ração em barras
para três dias. Tudo bem acomodado na mochilinha preta que Lucinda havia
providenciado para ele. Nas zonas protegidas, havia de tudo. As
corporações não deixavam faltar nada. Fora das muralhas, era o oposto. O pouco era
disputado a tapas. Mas ele não podia carregar mais coisas.
Embora se aproximasse o calor tórrido do verão, Agenor havia
preferido vestir seu velho uniforme cinzento de trabalho na petroleira, apropriado
para todas as intempéries.
Despediu-se de Lucinda do alto do muro com um
prolongado aceno, as emoções ocultas pela escuridão da noite. Ainda de braço
erguido e punho cerrado, ela gritou-lhe boa sorte. Ele desejou, em seu íntimo, que
os parceiros da quina decidissem bancar o sustento dela no futuro, quando se
extinguisse sua aposentadoria.
O povo unido jamais será vencido. Por ironia, foi
essa a frase que lhe veio à cabeça, antes de pular, sozinho, para o outro lado
de sua existência: um bordão batido, entoado aos gritos no tempo dos partidos e
das manifestações, quando, em geral, o povo estava sendo derrotado em alguma
batalha por direitos.
Escorregou muralha abaixo e jogou-se sobre uma
tolda que algum cigano extraviado havia estendido como barraca sobre o valão.
- Filho da puta – o homem gritou, avançando
sobre Agenor.
E foi só o que ele disse. Emborcado sob a proteção
de lona, não teve forças para erguer-se após o balaço certeiro que lhe
endereçou Agenor.
O velho fujão lamentou ter precisado gastar uma
de suas balas, cujo sibilo ainda zumbia no ar como uma abelha biônica, por um
motivo tão besta. Muitos confrontos o aguardavam.
- Não hesite em atirar - havia recomendado Lucinda. - O importante é chegar são e salvo à colônia dos refugiados.
Cogitou trocar seus pertences com os do cigano morto,
como lhe tinha sugerido o paranoico Vandinho, para quem tudo o que havia na
quina estava equipado com rastreadores. Mas não quis trocar seu capote
impermeável e seu bom par de botinas por um poncho surrado e as alpargatas
carcomidas do outro. Fosse verdade o alerta de Vandinho, Lucinda o teria instruído. A menos que Lucinda...
Afastou-se do muro coxeando um pouco, pois a
proeza que havia acabado de fazer não estava recomendada para octogenários na
cartilha de procedimentos do Paz e Harmonia. De agora em diante, restava-lhe buscar
abrigo nas profundezas do lado de fora, espaços onde só tinha se animado a
andar sob a proteção das equipes de transporte que o levavam ao trabalho nas
plataformas de extração de petróleo. Dessa vez, não poderia voltar. Do lado de
dentro, muitos jamais haviam saído. Os de fora penetravam na cidadela sob
suspeita e olhares vigilantes.
Agenor sabia estar no território dos Feras, pois
eram eles os fornecedores de canabinoides para
os escleróticos das quinas vizinhas àquela porção do muro. Em cada agrupamento
de quinhentos velhos, de cem a duzentos faziam uso do medicamento proibido.
Precisaria mover-se com cuidado, mas ganhar a maior distância possível da
muralha até o amanhecer, quando passaria a compor a lista dos renegados. Teria,
então, sua foto de perfil inserida nos arquivos de busca da Securitatis, ainda
com a longa barba branca que Lucinda ajudara a raspar antes da fuga.
Haviam-lhe dito que os agentes de busca
preferiam trabalhar nos primeiros anéis da periferia, onde moravam os
trabalhadores temporários – ainda úteis para as corporações – a penetrar nos
meandros profundos do mundo dos perdidos. Drogados, mercenários e traficantes
de qualquer coisa, velhos fugidos do abate, como ele, doentes, expurgados, mal
paridos, inválidos e mutilados, loucos, gente para quem outra vida não valia
nada, esse seria o seu universo redentor de agora, o universo dos perdidos. Uma
gente que exterminava a si mesma, sem desperdiçar o orçamento da segurança, nem
agigantar as estatísticas das mortes pela Securitatis, sempre constrangedoras
para o discurso asséptico dos governantes.
Um misto de receio e excitação invadia Agenor,
que apertava o passo para longe da cidadela dos nobres, aquele mundo
organizado, imutável e cheiroso - para poucos - que acabava de abandonar. Teria
Lucinda guardado amostras de seus pelos para o rastreamento de DNA pela força
de resgate? Ou queria de fato ajudá-lo quando propôs raspar sua barba?
Uma profusão de odores antigos chegava-lhe às
narinas: esgoto, cerveja choca e mijo, lixo amontoado, tabaco, esfregão molhado,
tortillas na chapa, madeira seca,
cozido de repolho, lenha de maricá, gordura no carvão. Apesar da tempestade
olfativa, não teve saudade dos adocicados aromatizadores de ambientes com que
convivia há tantos anos.
Ao deslocar-se, evitava as aglomerações, os
bares e os guardiões dos becos, mas não se atrevia a transitar pelos lugares
muito ermos. Suava sob o jaquetão. Havia caminhado um bocado pela noite escura
e quente dos arrabaldes. Sentia-se oprimido pela máscara antipoluição e pelas
correias da mochila.
No passado, pela década de vinte, haveria o
ladrar de cães para acompanhá-lo. Agora, não. Vez que outra, o voejar de um
morcego ou uma ratazana assustada, fontes de proteínas ainda não absorvidas
pela voraz indústria alimentar. Enquanto roía uma barra de ração para reavivar
as forças, avaliou ser impossível determinar o tipo de carne processada que
estaria embutida ali. Peru, macaco, cachorro, lagarto, marreco, sabiá? Há tempos
não ouvia o canto insistente de um sabiá laranjeira, tão comuns na sua infância.
Caminhava entre gradis fechados. Haviam
proliferado as habitações em gaiola. As ruas estavam estranguladas pela
ocupação irregular das calçadas. Em pouco tempo, restaria apenas o leito
elevado dos trilhos para transitar. Por sorte, não passavam trens àquela hora
para colocar em risco a jornada de Agenor. Eram estreitos os períodos diários de
acesso à cidadela e duas as opções de turno. O tribunal das corporações havia preferido
ordenar assim o tráfego entre o centro e as áreas periféricas para facilitar o
controle das licenças de entrada.
A segunda bala mortífera de sua pistola Agenor
endereçou para a jovem que saiu de um beco, num repente, e quis roubar-lhe a
mochila com seus parcos pertences e a garrafa d’água. A terceira, a quarta e a
quinta para o rapaz musculoso que veio em socorro da outra, quando a viu cair.
Ao dar o tiro na moça, pensou ter ouvido novamente o zumbido da abelha. Nos
disparos seguintes, estava agitado demais para ouvir qualquer coisa além dos
gritos roucos da vítima. Achou que era assim mesmo, não estava acostumado com
pistolas eletrônicas. Mas bem podia estar enviando coordenadas.
Ao ver a primeira árvore fora da cidadela,
esquálida e ressequida, procurou afastar-se das luzes e da via elevada. Aventurou-se,
sem rumo certo, pelas vielas estreitas e sinuosas. Imaginou estar se
aproximando da área dos Fúrias quando viu o guardião de traços asiáticos vindo
em sua direção, com sua longa espada de samurai. Teve de gastar a sexta e a
sétima balas para derrubá-lo. Voltou correndo para os arredores da linha, no
rumo da árvore seca que lhe servia de referência. O melhor era seguir os
trilhos. Foi o que Lucinda havia dito: o melhor é seguir os trilhos.
Gastou as últimas três balas para manter à
distância um perseguidor, parceiro do guardião nipônico. Mas esse ele não
conseguiu matar. Sem munição, a arma ficou emitindo um zumbido preocupante. Enquanto
tentava silenciá-la, Agenor pensou que o teriam tratado com mais respeito no
Paz e Harmonia se soubessem que seria capaz de matar quatro inimigos com apenas
dez balaços. Mas isso nem mesmo ele imaginava fazer no tempo em que vivia lá.
Atirou a pistola inútil e estridente para longe.
Correndo e tropeçando junto aos trilhos de cerâmica supercondutora, invadiu um
descampado seco e poeirento, por onde andou mais de hora entre barrancas
pedregosas, à luz pálida da lua. Alcançou, enfim, um platô amplo e fedorento, fracamente
iluminado, com dezenas de cercados retangulares. Vinha de lá um rumor soturno
de animais contidos. Aproximou-se, com cuidado, lamentando a ausência da
pistola protetora.
Das laterais da via, faiscaram luzinhas
vermelhas. Agenor ouviu outra vez o zumbido das abelhas biônicas. Sentiu uma
vibração estranha no peito e percebeu que, no lado esquerdo do seu jaquetão
impermeável, havia agora uma área derretida e chamuscada.
À boca da esplanada, deu-se conta, apavorado,
que aqueles pequenos currais em sequência estavam cheios de velhos como ele. Então
seu corpo começou a formigar.
- Baia quarenta e sete – alguém gritou.
No fundo do vale, austera e persistente, fumegava
a chaminé do matadouro.
- Miguel da Costa Franco -
- Miguel da Costa Franco -
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