Fazia tempo que Alícia e Rafael haviam extraviado
seus códigos. Se ele dizia “eu te amo”, ela devolvia apenas um olhar de dúvida.
Não se via iniciativa de aproximação, da parte dela, há bem uns quatro anos. De
seu lado, Rafael reconhecia ter-se tornado pouco inspirador. A falta de ímpeto
da companheira era motivo suficiente para fazê-lo desistir de qualquer atitude
mais ousada. Fica para outra. Tudo bem. Não quer, não quer. De modo que o sexo havia
escasseado, num sentimento incômodo de desejo não correspondido, como se
restringem ao largo da vida as comilanças da noite ou o chimarrão do entardecer
por medo da insônia ou das perturbações digestivas.
Mas quarenta dias sem sexo já era demais. Era o
que pensava Rafael, ao pé da escada que separava o living da sala de jantar. Algo
deveria mover Alícia das catacumbas sombrias do celibato. Ansiava por fazer
brotar um pouco de desejo das funduras daquele pijaminha de pelúcia, vencer a
babosice televisiva apelando para a animalidade irrefreável, da qual ainda
esperava encontrar traços na companheira, estivessem eles sufocados pelo
cobertor xadrez ou escondidos no fundo das pantufas.
Imaginou-se a afagar a pele alva do pescoço de
Alícia. Adivinhou pelinhos eriçados brotando primaveris. Sonhou em brincar com
a língua, subindo com movimentos sinuosos, degrau a degrau, a escadaria das
vértebras. Pensou propor sociedade entre seus lábios e os montinhos que
demarcavam, em par, a blusa dela. Mas algo já cristalizado em suas relações lhe
cortava os impulsos. Um sussurro oprimido no peito o avisava: não vai.
Ainda assim, naquela noite, o desejo era maior.
Um saco de pães entreaberto sobre a mesa ostentava indecoroso meia dúzia de
bundinhas enfarinhadas, umas por sobre as outras, numa provocante suruba
imaginária. Rafael sentiu uma ereção se avizinhando e achou que já estava
ficando meio sequelado pela falta de sexo. Excitado com a visão de pães
cervejinha?
Uma lembrança remota reorientou seus
pensamentos: Rejane. A morena se aproximando pela passarela da avenida Júlio, o
sapato preto do uniforme driblando as lajotas soltas da calçada, as coxas roliças,
os olhos irrequietos semi-ocultos pela franja rebelde.
Rafael desatou a corda do roupão e livrou-se
dele sobre a poltrona de veludo. Ato contínuo, desfez o nó do pijama, deixando
as calças embolarem-se sobre os pés. E assim permaneceu, animal insensível ao
frio de agosto, a ereção virando insânia, os glúteos contraídos, Rejane ocupando
confiante a passarela, com seus passos decididos e os lábios brilhantes.
É verdade. A avenida Júlio tomava ares de passarela,
especialmente quando servia de palco para o desfile das alunas do colégio das
freiras, com suas saias pregueadas e as pernocas expostas à mirada enviesada de
quem se postava lá embaixo, ao nível do chão. Os terrenos haviam ficado
desnivelados do leito da rua, pois os operários haviam canalizado o riacho alguns
metros sob a via.
Para ficar alinhado à calçada, o casario de
madeira se erguia, no mais das vezes, sobre espaçosos porões, de pé direito
alto. O mais bem cuidado parecia ser o porão do Vilson, vizinho de Rafael, de
onde ele via sair dona Aurélia, todos os dias, com baldes e vassouras. Bem
cuidado, sim, mas não se poderia dizer limpo, porque o Vilson fazia suas
necessidades onde lhe desse na telha. Não perdoava sequer a poltrona de tecido
desbotado que decorava a saleta da frente. Até esfregava suas fezes na parede,
se lhe aprouvesse.
Ninguém se aproximava daquele porão. Protegido
pelo riacho que separava suas casas, Rafael, de todos os guris da redondeza, era
o que chegava mais perto. Pelo lado oposto, a meninada nunca se acercava da
cela do Vilson, porque seria preciso cruzar o milharal – bem mais alto que eles
todos -, ou os renques vigorosos de capim-elefante, que pareciam esconder logo ali assim aquele ser tão temível.
Tinha mesmo ares de cela o porão do Vilson. As
paredes, de cimento liso, haviam sido pintadas com sobras de tintas diversas, e
as janelas eram pequenas, com vidros partidos ou borrados. A cama era um
simples estrado de tábuas nuas e a tranca ficava pelo lado de fora. Às vezes, ouvia-se
uma gritaria lá dentro. A mãe dele entrava em desespero com a lambuzeira que o
Vilson fazia e com a profusão de gatos e cachorros que o tipo levava para lá, em
busca de companhia.
Protegido pela barreira do riacho, no alto da
macieira que se debruçava sobre as águas, Rafael podia ficar em paz espiando o
Vilson. O outro convivia bem com aquela parceria silenciosa. Ficava por ali
zanzando, ou socando o solo com um pedaço de pau, a boca deixando escapar uma
baba viscosa a cada vez que rodava a língua. Aparentava serenidade na presença de
Rafael, ao contrário de como se comportava frente aos passantes assustadiços. Não
lhe era confortável o efeito que causava nas pessoas. Tratavam-no como um
bicho. Punha-se agressivo, à beira do terreno, com suas calças atoradas um
pouco abaixo dos joelhos, seguras apenas por um grosseiro cinto de soga.
- Ainda ontem lhe dei uma calça novinha! –
desculpava-se dona Aurélia. – Mas olhem lá o que ele fez... – dizia a velha,
desapontada, indicando com os olhos o arremedo de bermuda, que era o traje
típico do louco-louco, como todos chamavam o seu filho adolescente.
Pelo menos, era o que diziam: que era filho dela
e tivera meningite quando pequeninho. Todos se pelavam de medo de adoecer e
ficar daquele jeito. Aceitavam sem protestos qualquer campanha de vacinação.
Alícia remexeu-se no sofá, trocou de canal a
tevê, circulou por outras emissoras e retornou à original, sem dar-se conta da
presença ostensiva, mas silenciosa, do companheiro seminu na escada da sala de jantar.
Alícia podia percorrer todo o espectro eletromagnético e não se dar conta da
profusão de partículas que revoluteavam às suas costas.
Rafael sentiu-se mais próximo de seu desprezado vizinho
de infância. Lembrou que as gurias do Colégio Maria Imaculada eram capazes de
dar a volta no quarteirão para não toparem com o Vilson. Ele sabia o horário
delas passarem. Àquela época, beirando a maioridade e inundado de hormônios,
dera para arriar o bermudão perto do meio-dia e esperar por elas com a
canjerana exposta, balançando despretensiosa ou com insuspeita empolgação.
Nessas ocasiões, dona Aurélia corria com ele para dentro a vassouradas. Dava dó
de ver. Da macieira, Rafael ficava a ouvir os estranhos grunhidos que iam
ganhando corpo no porãozinho, até se estancarem como um choro manso.
- Punheteiro! – taxavam os mais velhos.
Mas Rafael nem sabia o que era isso. Talvez
fosse apenas mais uma ofensa gratuita que atiravam sobre o pobre vizinho.
Rejane nunca mudava de calçada. Quando dona
Aurélia não atinava a tempo, o Vilson ficava lá parado, com aquela coisa
pendurada, ou aparecendo e sumindo, aparecendo e sumindo no oco da sua mão.
Agachada atrás da cerca-viva, a gurizada espiava
a cena desde o jardim da casa de Rafael – Cao, Berto e ele, às vezes também o
Vermelho. Nessas horas, o Vilson não gostava de vê-los, pois a movimentação dos
meninos acabava chamando a atenção de dona Aurélia.
Com a repetição daqueles encontros, Rafael – já conhecedor
da anatomia surpreendente do louco-louco - passou a dedicar mais tempo à Rejane.
Notava nela um ar empertigado, desconhecido. Tinha personalidade. Não ficava
envergonhada de ver o ticão do Vilson, nem escondia o rosto ou fazia galinhagens
à distância. Rejane tinha um brilho travesso no olho. Seus lábios eram úmidos e
lustrosos, mas sem a baba grossa do Vilson. A dela era só uma película fina de
saliva, que ela renovava com a pontinha da língua, em movimentos sutis. Rafael
aprendeu a reconhecer ali uma espécie de gula. Concentrava-se mais e mais no
seu rosto de traços suaves, o cabelo basto escondendo em parte as bochechas
rosadas, rosto que ela não virava de lado ao passar pelo louco-louco. Ao
contrário, mirava-o direto, a linguinha ágil trabalhando, os olhos pousando
serenos sobre os do Vilson, e descendo vagarosos para onde bem sabemos. Diante
dela, o louco-louco ficava sempre mais manso.
Rafael foi pegando simpatia por Rejane. Como Vilson,
ele queria vê-la passar todos os dias. Tinha vontade de conhecê-la mais, e
através dela entender melhor a alma feminina. Tomaram cumplicidade naquilo,
Vilson e ele: esperá-la passar. Mas Rafael era invisível para ela. Ao deixar
para trás o louco-louco, Rejane redirecionava a sua concentração para as
lajotas do caminho, defendendo os carpins brancos dos esguichos que brotavam
das pedras soltas, pois, naquela terra, chovia quase todo o santo dia. Ele
acompanhava a morena se afastar, a saiota azul-marinho balançando um pouco
acima da dobra dos joelhos, até que ela sumisse na esquina.
Muitas vezes espiou-a solitário, porque Dona
Aurélia andava de olho grudado no filho. Era Vilson tomar o rumo do portão,
entre o riacho e o milharal, e a velha já brandia a vassoura nas pernas dele.
Uma freira do colégio tinha vindo visitá-la.
Rejane andava aflita. Passava devagar,
procurando-o na escadaria que levava até a plantação, olhando de soslaio, a
pasta apertada contra os seios miúdos. De seu lado, Vilson andava casmurro. Quase
atirou uma acha de lenha em Rafael quando o viu no galho da macieira.
Mas foi Dona Aurélia relaxar a guarda e ele retomou
seu posto, escondido junto aos moirões da cerca. Plantou-se acocorado na ponta
dos pés, como se estivesse fazendo necessidades, as mãos cruzadas sobre as coxas,
os olhos varrendo a avenida. Não deu bola para as primeiras gurias que ousaram
passar pela calçada em frente. Ficou quieto no seu canto, torcendo o pinto para
lá e para cá, amassando-o, untando-o de baba. Mas foi Rejane apontar na altura da
casa da Haidée, que era a segunda ao passar a esquina, e ele saiu do seu esconderijo,
a vara roxa e grossa como um nó de pinho, e postou-se no primeiro degrau da
escada, balbuciando coisas.
Rejane afrouxou o passo, desceu a pastinha que
trazia contra o busto, mas não se afastou em direção ao meio-fio, como outras costumavam
fazer. Olhou para trás, à procura de companhia, e pareceu feliz em não encontrar
ninguém. Seus lábios úmidos, brilhando ao sol do meio-dia, abriram-se um pouco
quando desceu os olhos para os instrumentos do Vilson, sem mover o rosto para
baixo, como era o seu jeito discreto de olhar. Pareceu surpresa com o vigor que
a canjerana do louco-louco aparentava. Também Rafael nunca a tinha visto assim
tão grande. O monstrengo ganhara vida. Vilson gemia, como se chorasse. Antes,
suplicava.
Algo de novo aconteceu, como agora Rafael
esperava ver suceder com Alícia. Rejane aproximou-se do Vilson, cuidadosa. Olhou
mais uma vez para os lados – seria socorro o que ela queria? – mas não, não
parecia ter medo dele. Talvez de alguma outra coisa que a perseguisse.
Vilson havia começado a mover a mão direita com
mais ritmo, a esquerda coçando as costas com fúria, o bermudão cinza arriado até
as canelas. Rejane estendeu o braço, hesitante, como que pedindo permissão.
Vilson soltou o pauzão ainda duro e ficou limpando a mão nas fraldas da camisa.
Com cuidado, Rejane tomou o seu lugar e agarrou firme a verga arroxeada por
alguns segundos. Depois, deixou-a de lado, apressada, procurando por todos os cantos
a certeza da solidão. Não notou a presença de Rafael, pasmo, imóvel.
Mais do que seria para ele o seu longínquo
desvirginamento, aquele, com certeza, foi seu ritual de iniciação.
Tudo isso ocorreu a Rafael, enquanto se mantinha
estaqueado na escadinha, as calças encobrindo os pés,
o pênis apontando para o lustre de pingentes de cristal.
Alícia olhou-o interrogativa no primeiro
intervalo da novela, quando se voltou para ele à procura de cigarros. Rafael manteve-se
sério e teso, como sugeriria o Vilson. Pacífico, nunca ameaçador. Alícia
esboçou um sorriso cúmplice, mas o outro não estava para brincadeiras. Ela sacudiu
a cabeça, em reprovação, mas desistiu de reprimendas, percebendo a gravidade do
gesto do parceiro. Quis fazer graça, no intuito de vencer o constrangimento
pela via fácil da galhofa, mas não encontrou eco naquele arremedo de louco-louco
que Rafael se havia tornado. Ele se mantinha impassível. Alícia apertou as coxas,
uma contra a outra, e balançou-se toda em trejeitos que bem poderiam ser um
sintoma dos hormônios dizendo sim, sim, sim. Levantou-se, com um olhar
ardiloso, molhou os lábios, num movimento conhecido de Rafael desde sua meninice
serrana, aproximou-se ainda relutante – homens de pau duro podem ser assustadores
- e, agarrou seu pênis com força, como uma Rejane repetida. Ficou assim, algum
tempo, sentindo o pulsar do sangue em alvoroço estufando os corpos cavernosos
de Rafael. Então decidiu soltar a cordinha do seu ridículo pijama de pelúcia, baixou
a calcinha com a mão livre, ajudando por fim com o pé esquerdo, pois que a
outra se mantinha estreitando a tocha varonil. Livre dos fantasmas que perseguiam
Rejane na avenida Júlio, aproveitou o desvão do degrau e aboletou-se sobre a
verga renascida. Aleluia, irmão, aleluia.
- Miguel da Costa Franco -
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