quinta-feira, 1 de junho de 2017

No Brasil da Avenida Sete


   Para o filho pequeno do promotor público, o Brasil real - antes da Copa de 66 -, era o que estava ao alcance dos seus passos, nas últimas quadras da Avenida Sete de Setembro. O resto vinha pelas ondas do rádio e caía na conta do imaginário.

   No microcosmo da Avenida Sete, como todos a chamavam, havia escolas, armazéns, fábricas, hortas, polícia, pobres, ricos, crianças, velhos, loucos, índios, o que se procurasse. Até a Justiça havia se assentado ali, na forma de um promotor gordo e cheio de filhos.  

   Era um Brasil afeito a safadezas o que havia pelas bandas da Avenida Sete.

   O leiteiro da família do promotor costumava compensar com um tantinho de óleo de soja a gordura que subtraía ao leite para fazer umas bolas grandes de manteiga, que vendia sob encomenda. Ao cliente descontente com o leite meio aguado, admitiu que a mistura era justamente para dar-lhe mais “sustança”.

   No outro lado da rua, a Torrefação de Café Maracanã fazia coisa parecida. Recebia muitos caminhões de serragem das madeireiras da região, supostamente para alimentar as fornalhas. Mas o pó escuro do café Maracanã vinha sempre salpicado de um ingrediente mais claro e fibroso. Uns diziam ser quirera de milho, outros, que era serragem mesmo. Por via das dúvidas, o precavido promotor gordo recusou uma caixa de bebidas finas que o torrefador, um nome assíduo nos processos do fórum, mandou-lhe um dia de presente.

   O turco Samir, por sua vez, enchia toda manhã o seu velho Studebaker, duas casas mais além, com rolos e rolos de tecido colorido para vender pelos distritos mais afastados da cidade. Voltava à tardinha, distribuindo balas e pirulitos, alegria da criançada. Fugiu para os lados de Chapecó, quando o promotor gordo processou por estelionato um tal Gabriel Salim, codinome que Samir usava para enganar sua clientela interiorana. Jamais pensou o homem da lei que fossem os dois a mesma pessoa.

   Também um Brasil meio violento desfilava pela Avenida Sete.

   O bodegueiro Nicolau moía a pancadas o filho Laureano, que só queria saber de jogar futebol e nunca o ajudava. Laureano despejava sua raiva contida em todos os guris menores que dispunham da tarde livre para fazer o que bem quisessem. Entre eles, o filhote do promotor.

   À direita da casa do homem gordo e cheio de filhos, ficava o chalé de Dona Berta, que mantinha o Wilson Maluco em semicativeiro, num porão tão espaçoso quanto fedorento. Sentava o sarrafo nas costas dele sempre que o via se masturbando junto à calçada, à hora da saída do colégio das freiras, sob excitado e rotineiro alvoroço feminino. Teve meningite na infância, desculpava-se ela para a madre superiora, não há o que eu possa fazer.

   Na esquina do quarteirão, ficava a borracharia do Olavo que, por causa do golpe de 64, não sabia como repatriar livre de problemas o filho Rinaldo, que estudava engenharia na União Soviética, com bolsa conseguida nos tempos do Jango pelo extinto Partido Comunista.

   O promotor público não lhe oferecia respostas, acuado pelo arbítrio dos militares.

   Era um Brasil injusto o que percorria a Avenida Sete.

   Da delegacia de polícia, como sempre, a população pouco se valia. O melhor era nem passar em frente.

   Despossuídos abrigavam-se do clima frio da serra no barracão de costaneiras construído pela Prefeitura. Eram, em sua maioria, bugres extraviados, entre eles o folclórico Bastião-mulher, um espevitado homossexual que vendia cestos de vime e baixava as calças por qualquer tostão.

   A lavadeira da família do homem da lei também se refugiava no barracão da Prefeitura à noite, depois de lavar a roupa num riacho de águas suspeitas. Interpelada pelo promotor, que lhe afrontou com um empertigado “você sabe com quem está falando?”, a mocinha devolveu, do alto de seus tamancos, “e o senhor, por acaso sabe me dizer com que lavadeira está falando”? O nome dela era Célia e, apesar de perder a encomenda de serviços, ganhou o respeito da família, que não gostava de abusos.

   A filharada do promotor pedia meia cabeleira na barbearia do Tauphick, que coletava apostas para o jogo do bicho, uma maneira conveniente de aumentar sua renda. Um dia, o cliente gordo, legalista e cheio de filhos, obrigou-se a dar-lhe voz de prisão ao receber a oferta criminosa. Dizem que depois se arrependeu de tentar secar a ponta do iceberg com o avental rasgado do barbeiro e arquivou a denúncia.

   Ao mesmo tempo, um Brasil de fartura e potencial se escancarava às janelas da Avenida Sete. A fábrica de trilhadeiras vivia cheia de encomendas. Uma penca de crianças enfeitava os amanheceres com seus guarda-pós brancos do grupo escolar ou o uniforme azul-marinho do Colégio Maria Imaculada. Os quintais ofereciam frutas e verduras frescas e as colônias forneciam de tudo. No depósito de banana, reciclavam-se os jornais velhos para embrulho e, no açougue, a carne era tabelada por quilo. O filé mignon tinha o mesmo preço da carne de segunda. Comiam-se bifões na casa do homem da lei, em pleno café da manhã.

   Na venda do seu Adelmo, o promotor tinha crédito fácil. Anotando tudo numa caderneta, fartava-se de comprar feijão novo a granel e pinhões recém-colhidos, ou salames e copas de boa feitura e calibre, para pagar somente ao final do mês. Os seus filhos buscavam ali um litro de Crush ou Minuano Limão para o almoço dos domingos e esbaldavam-se nos mandolates, nas balas Mocinho e nos sorvetes secos.

   Uma vez por semana, o Brasil da Avenida Sete continha o riso, respeitosamente. Todo o sábado, Neco Bertoni lavava a cabeleira de corte desuniforme numa bacia de água morna, sob as árvores do pátio. Bertoni queria disfarçar o indisfarçável. Cultivava longos fios de cabelo somente do lado esquerdo, para poder cruzá-los sobre a cabeça, grudando-os com goma caseira sobre a calva salpicada de sinais. Um espetáculo.


   Assim era o Brasil da Avenida Sete em 1966.

   Naqueles dias que antecediam a Copa, nesse extrato de Brasil interiorano, o mais importante para o filho pequeno do promotor é que ele desfilava entre fábricas e escolas, entre Adelmos e Nicolaus, entre Olavos e Tauphicks, ou entre Célias e Bertonis, vestindo a camisa “canarinho” do Alcindo, o centroavante do Grêmio, único gaúcho convocado para compor a seleção.

                                                                        - Miguel da Costa Franco - 


Nenhum comentário:

Postar um comentário