quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Quadro geral



   Deiverson acha tudo normal. Na boa.

   A Guta discorda, diz que a coisa piorou muito.

   Eusébio faz pouco caso, pois sempre foi assim naquele fim de mundo.

   Dolores parou de surtar depois da consulta ao médico estrangeiro no posto de saúde da Vila Angorá.

   Maria Clara não sai mais de casa sem checar o aplicativo “Onde tem tiroteio”.

   Aos quatro anos recém-feitos, Lucas tapa os ouvidos e se mete embaixo da cama ao soarem os primeiros estampidos. Já aprendeu bem direitinho.

   Matheus e Cibele brigam com a mãe: não querem deixar de ir ao baile funk só por causa disso.

   Sonielson ameaça voltar para a Paraíba. O seu vizinho Olavo, para o interior.

   Antigo na área, o bodegueiro Marcelino recorda, gangue por gangue, toda a história da disputa de poder na Vila Malacara.

   A única psicóloga do bairro explica que é como se todo mundo tivesse uma mochila nas costas e, conforme vivencia experiências difíceis, vai acumulando peso. Pelas tantas, essa mochila rasga ou explode.

   Rejane admite estar sempre com medo. Renato desdenha:

   - É frouxa.

   Sônia Porreta concorda com Renato:

   - Basta ficar ligada.

   Jorginho perdeu dois amigos do peito. Um, para o tráfico, outro por bala perdida.

   Bituca parou de usar fones de ouvido, boné ou correntão. Pega mal com os “homens”.

   Sandra sente muito medo pelas filhas. O gari Doralvino trata de acalmá-la:

   - Aqui, todo dia, é o mesmo pagode. A gente acostuma.

   Letícia se trancou em casa, mas o marido Moacir não quer saber de boletas ou consulta ao psiquiatra, porque isso é coisa de maluco.

   Clara só reclama da insônia. Tem mais medo de sair à rua quando a polícia aparece. Os guris da boca, ela conhece bem.

   A enfermeira-chefe do posto de saúde confirma que a fila é sempre grande, mas não há perspectivas de aumento de funcionários. Até gosta dos dias de furdunço lá em cima do morro. Aparece menos gente.

   Claudete periga perder o emprego. Está difícil se encorajar pelos becos na madrugada e a patroa vive se queixando dos seus atrasos.

   - Aqui nunca se sabe o dia de amanhã - filosofa o Eliseu, da quitandinha.

   Helinho e Pedro Henrique adoram brincar de “quem vai ser o dono do morro”. Júlio e Casquinha preferem “polícia e ladrão”.

   Jurandir fica revoltado:

   - É muito louco na hora de voltar para casa você consultar um grupo do whatsapp para ver se tem guerra acontecendo.

   A diretora da escola é contra incursão policial na hora de entrada e saída das crianças.

   Toninha sofre dos nervos. Queria ter grana para pagar uma terapia particular, mas o conteúdo dos bolsos mal garante as passagens de ônibus.

   Egberto levou um tiro de raspão na última briga de gangues. A médica do atendimento disse que seria pior se ele fosse preto. Provavelmente, teria de ser atendido algemado.

   Maria está casada há oito anos e segue aguardando um momento melhor para começar a ter filhos. Mal pode esperar para amamentar seus bacorizinhos, até já viu leite pingando das tetas.

   Diego André chora e treme muito nos dias de confrontos. Os irmãos o chamam de veado.

   Martinho até hoje não sabe de onde veio a bala de fuzil guardada no seu ombro.

   Susana sonha com vender a sua casa, mas todos acham que ela está pedindo alto. Ninguém vai pagar muito por um cafofo todo furado ao lado da escadaria de acesso.

   Um guri dos “Manos” comeu a Edicleide e os outros filmaram tudo. Comprar a gravação custou mais de mil reais. O padrasto Antenor consola a mãe da guria:

   - Seria bem mais caro se tivesse rolado o cuzinho.

   Francisca insiste em criar os filhos ali, na companhia do marido. João, de seu lado, confia na proteção de Deus.

   Marlene largou dos remédios para a síndrome do pânico, pois estava sempre meio grogue.

   Adriana não quis jogar fora os chinelos do Alessandro e ainda dorme com a camiseta que ele vestia no dia do assassinato.

   - Sexta-feira Santa para mim não existe mais - dispara Fabíola. - Nem Natal, nem Ano Novo. Thaylon tinha só seis meses quando o pai morreu e hoje a gente gosta de brincar de fazer mosaico com as fotos dele.

   O tenente-coronel enxerga avanços:

   - Tiroteios, agora, só de dois em dois dias.

   Joaquim concretou a frente da casa para as balas não entrarem mais.

   Jurema fica com pena de não poder frequentar o culto por causa do estado de guerra permanente.

   Nos dias brabos, Mathias grava vídeos de si e da irmã e envia para a mãe, no serviço dela, para tranquilizá-la. Já fez uma redação para o colégio tratando do calibre das armas. O professor disse que ficou bem boa.

   O doutor da Universidade considera as equipes dos postos da periferia mal treinadas em saúde mental. Para ele, há uma verdadeira epidemia de Transtorno de Estresse Pós-traumático, muita gente sequelada.

   O borracheiro Adílson confia menos na polícia.

   Maiara inventou de filmar a abordagem violenta dos brigadianos sobre um desconhecido. Acabou perdendo o celular e levando uma surra, mas não se arrepende.

   A Cruz Vermelha espalhou pelas escolas um protocolo de segurança para os dias de crise.

   Judite largou a terapia de grupo por causa da fofocalhada dos vizinhos.

   Katielen acha impossível voltar para casa no meio da noite. Para a vizinha dela, Carol, isso é desculpa de puta.

   Parte da gurizada segue jogando futebol no campinho, o que se vai fazer? Paulo e Elias estavam aprendendo violino no Centro Comunitário, mas agora passam os dias trancados vendo televisão.

   A imprensa se refestela na escalada da violência. O homem da rádio até se candidatou a deputado.

   Para Anderson, o cadeirante surdo, é puro exagero. Sua vidinha segue rodando tranquila, de boa, do quarto para a sala, da sala para o quarto. Mas não pode faltar o baseado.

   O novo governo, por enquanto, só tratou de rescindir o convênio com os médicos estrangeiros. Era tudo comunista.


                                                         -Miguel da Costa Franco -


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