quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Vista da janela



   Dos altos da minha janela no décimo andar do bairro Montserrat, acácias, guapuruvus, cássias e grevíleas disputam o mais lindo tom de amarelo, entre um que outro vermelho e o roxo dos jacarandás. Nesta tarde primaveril triste e luminosa, o colorido das flores ameniza a relevância maior do verde abundante e real, que as produz e alimenta.

   Outro verde metafórico, pendendo para os militares tons de oliva, também venceu a multiplicidade das cores. Foi igualmente mais forte do que a resistência democrática.

   Ainda assim, um e outro – o verde real e sua caricatura - não apagaram a beleza dos pendões floridos, a brotar renitentes por todo o lado. Nem esconderam os edifícios enfileirados, abrigando relações tortas e desiguais, que tornam o cinzento nos bairros mais nobres e o ocre dos tijolos nas favelas, em verdade, as cores predominantes na paisagem.

   Há uma doença se expandindo nesta cidade, cujas dores o verde-oliva triunfante não conseguirá aplacar. Nem quer.

   Os tons de cinza e ocre do nosso cotidiano violento e miserável continuarão desafiando a todos, ainda que estejam alguns num júbilo ostentatório e agressivo e, outros, roídos de angústia e medo do porvir.

   Vivo num país cruel e surreal. O império da desigualdade no planeta. Convivo com uma sociedade em que o egoísmo supera a empatia pela dor do outro. Em que se acredita mais em muros e cercas eletrificadas do que nas pontes e nas portas.

   Ainda que o antiesquerdismo realimentado, o preconceito, o racismo secular e a xenofobia copiada, o proselitismo religioso, a ignorância e as falsidades - um mar de balelas obscurantistas – sirvam de tapume para ocultar a furiosa defesa do status quo, as máscaras sociais estão em sua maior parte rasgadas. Não todas, pois o que seria de nós sem nossa sagrada hipocrisia? Confesso ter tido pesadelos com pessoas queridas, a quem não ousei perguntar diretamente aquele “estamos juntos?” reconfortador. Optei, também eu - vez ou outra -, pelo silêncio covarde. Mas há uma inegável barreira de valores a derrubar, catalogados entre erros imperdoáveis.

   Tive medo de fazer campanha pelo que acredito, ainda que os sonhos não envelheçam e seja direito de qualquer um defender o que lhe apeteça. Cauteloso, admito ter retirado, na manhã seguinte ao nosso holocausto, as bandeiras fixadas nas janelas do apartamento e os adesivos petistas do meu carro por medo de represálias. Afinal, a cachorrada está solta e faminta.

   Um dos seres mais abjetos do universo conhecido vai sentar-se na cadeira presidencial, empoderado pelo voto de mais de 27% dos meus concidadãos.

   Entre os grunhidos vitoriosos de alguns dos seus 57 milhões de eleitores, vejo discursos patéticos, tacanhos, ameaçadores, avessos à conciliação desejável. Em cadeia nacional, assisto ao sepultamento do estado laico. Num município próximo, uma metralhadora dispara assustadora felicidade para o alto. Postos de saúde para indígenas são vandalizados, mulheres e gays vêem-se hostilizados nas ruas e nas redes sociais. Ministros prováveis afrontam importantes países parceiros. Negros acuados se encolhem, saindo dos grupos de ação política.

   Vivo num país cruel e surreal.

   Calculo, feliz, que os fascistas convictos ainda sejam minoria. Afinal, somos quase 210 milhões de brasileiros. Mas não duvido da capacidade destruidora dos ungidos. Esta quarta parte adoecida da população quer mudar “tudo isso que está aí”, seja lá o que “tudo isso” represente. Diga-se, de passagem, o presidente eleito jamais explicitou seus planos. Recebeu um cheque em branco para governar, assinado pelos preconceitos vários e pelo ódio ao petismo.

   No passado recente, trabalhadores saíram às ruas por transporte mais digno e barato para chegar ao trabalho. Roubaram deles o trabalho e os direitos. Criticava-se a Justiça politizada, agora poderemos vê-la rastejar sob o tacão militar. Em bloco, pedíamos por mais segurança e defesa do cidadão, mas elevamos à glória os adoradores da tortura, os milicianos de grupos de extermínio, machistas infantilões e nazistas mal disfarçados. Teremos mais armas à nossa disposição, ainda que já tenhamos um exagero de assassinatos.

   Reivindicava-se educação de qualidade e um bom sistema de proteção social, receberemos em troca universidade pública para poucos, ensino à distância e educadores contidos pela lobotomizada “escola sem partido”, e mataremos a míngua o sistema público de saúde e de previdência.

   Pobre país!

   Nos estados, nós - que precisávamos de Betinhos e Mujicas -, empoderamos gente como Ronaldo Caiado e João Dória, mais uma tropilha de cavalgaduras empoladas. Ao menos, o ridículo “Sartonaro” foi corrido para a barra da saia da mama para reaprender a enrolar nhoques.

   Para livrar-nos do nosso Congresso de quatrocentos picaretas, elegemos outro ainda pior. Preservamos na entourage do tosco capitão eleito os salafrários das igrejas mercantilistas, partidos nanicos de aluguel e notórios corruptos de agremiações tradicionais. A corrupção nefasta, por aqui, segue sendo a dos contrários.

   Tínhamos um futuro garantido pela riqueza do pré-sal, para no domingo decidirmos por presenteá-la, definitivamente, às petroleiras estrangeiras. Nessa insana guerra pelo ouro negro, se antes éramos pacifistas, agora seremos bucha dos canhões norte-americanos contra uma Venezuela já destroçada pela guerra econômica.

   Sofríamos todos com o poderio da Rede Globo, mas amanhã veremos crescer em importância a emissora de Edir Macedo, explorador universal. Logo, voltaremos a bradar por liberdade de expressão e de imprensa.

   Vivo num país cruel e surreal.

   Da minha janela no décimo andar, vejo que a tarde caiu e o breu, aos poucos, foi engolindo tudo. O meu Brasil está todo meio dark. O deles comemora a escuridão. Nós e eles, eles e nós, não nos misturaremos neste horror que se anuncia. Somos água suja e vinho bom. A paz social alcançada a socos não nos apetece. Não há conciliação possível com quem prega a tortura e deseja o extermínio dos contrários e dos ativistas. É para a frente que se anda.

   Não sou dos que cultivam otimismo ao final do jogo perdido. Não. Eu sou dos que avaliam erros e acertos, dos que querem preservar conquistas e desenhar novas táticas e estratégias, fazer prosperar as lideranças frescas. Minha geração viveu a ditadura e sabe muito sobre o que nos espera. Uma caminhada longa e sofrida.

   Já aviso: não é certo que teremos as mesmas flores amanhã, efêmeras que elas são. Efêmeros que somos também nós poderemos morrer no percurso.

   Sou o velho que olha com ternura para o casal de namoradas, passeando altivo e de mãos dadas, na tenebrosa “manhã seguinte”. Sou o bem-nascido que se apieda do porteiro do prédio, com direitos trabalhistas em extinção, a velar pela minha tranquilidade gorda e branca. Não sou mulher, não sou índio, não sou negro, não sou pobre, não sou migrante refugiado, nem sou gay. Mas sou de tudo isso um pouco. Sou fenda na parede, um cancro escuro no tecido claro, uma brecha imprevista no “apartheid”. Sou aquele que não pretende levar a sujeira adiante.

   Não quero o novo pelo novo, tenho requisitos inabaláveis neste projeto de vida. Seguirei brigando contra o estado dominante, pelo fim da desigualdade. Quero um país mais negro, mais plural e com menos testosterona. A verdadeira mudança será preta, pobre e feminina, ou não será nada.

   Resistiremos. Outras flores haverão de brotar, amarelas, vermelhas, roxas, rosadas, brancas, púrpuras, alaranjadas, multicoloridas e diversas. Distintas em forma, cor e perfume, mas iguais em frescor e alegria.

   Primavera após primavera, estaremos peleando pela harmonia e pela equidade. Para devolver a grão de azeitona o verde-oliva autoritário que ora se engrandece.

   De minha parte, serei a mão desarmada que luta e protege, a mão dura a negar cumprimento ao torpe e a mão meiga acarinhando o injustiçado, a mão que cria e a mão que sepulta.

   Vivo num país cruel e surreal.

                                                                    - Miguel da Costa Franco

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6 comentários:

  1. MIguel, o mais triste - infelizmente - é que até nosso colorido das árvores está sob ameaça. Ontem foi aprovado o PL que permite que as pessoas podem cortar as árvores da sua calçada "para desafogar" a Smam, que como todos os setores da prefeitura não tem técnicos suficientes para dar conta dos registros. OU seja, quem tem sensibilidade, precisa unir esforços para atuar de forma estratégia.

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    1. Verdade, Sílvia, o individual superou o coletivo.

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  2. De arrepiar! Traduz de forma poética a moldura do Brasil atual, na visão dos que adoram a justiça.

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