quinta-feira, 12 de julho de 2018

Escurecer no pampa

Texto publicado na Revista Sepé (jun/21)      
       
   O homem pisou algo brando e mole e, em seguida, sentiu a picada no pé. Saltou para frente, e ao se voltar com um palavrão, viu a jararacuçu que se recolhia sobre si mesma; preparava outro ataque. Deu uns passos adiante, mas outra vez sentiu o pé apoiar-se em matéria flácida, indevida. Cruzeiras andam sempre aos pares, dizia o velho Tibúrcio, para quem não havia segredos no universo. Teriam as jararacas o mesmo hábito?

   Duas picadas em sequência, uma em cada tornozelo, o fizeram cair ao solo, de onde pôde acompanhar, atônito, a lenta retirada de suas agressoras pastiçal adentro. Eram das grandes.

   Mesmo que o sol já se encaminhasse para o poente, o calor era ainda sufocante. Tinha a camisa empapada de suor. Dores agudas irradiavam-se pernas acima. Percebeu marcas de duas mordidas na perna esquerda, quatro pontinhos de onde escorria sangue em abundância, e áreas amplas de pele enegrecida. Na direita, o golpe havia sido por trás, as marcas não estavam visíveis.

   Sentia-se paralisado, derrubado também pelo medo. Sabia que precisava voltar rápido à sede da fazenda e, dali, correr até a cidade, rezando para encontrar o soro adequado no modesto posto de saúde local. Caso contrário...

   Deitado, não conseguia enxergar o cavalo. Apenas o céu imenso e azul sobre si. Tentou erguer-se, mas suas pernas em fogo não queriam atender ao seu comando.

   - Alguém acuda! – gritou, sem esperanças.

   Nenhum peão viera por ali. Ele é que tinha embestado de ver de perto a plantação e inventara de cortar caminho pelo pedregal. Logo hoje, que havia deixado de lado as botas por causa do calor. Até haviam mangado dele, pois a lavoura era para os lados da vila:

   - Isso é desculpa pra ver a Chininha!

   Mas ele não era homem de frequentar puteiros.

   Aos poucos, o terror e a paralisia foram cedendo à urgência de sobreviver. No entanto, as pernas fraquejavam, não conseguia se firmar. Movendo os braços, começou a arrastar-se de volta à trilha, de onde – avaliava agora – nunca devia ter saído. Não sem proteção.

   O passaredo começava a recolher-se, procurando abrigo para a noite próxima. Mugidos distantes rompiam de quando em vez o silêncio das quebradas. Quero-queros defendiam seus ninhos com gritos de alerta agudos e ritmados.

   O homem, que se arrastava pelo chão duro e empedrado como se nadasse de costas, amassava com o torso rosetas, pedriscos, insetos, gravetos. Sentia na pele o riscar de pequenas lâminas impiedosas. Arranhões, picadas e arrepios marcavam-lhe as espaldas.

   A perna direita também começava a mudar de cor, tomando um tom cinzento ou azulado. Ou seria efeito do cair da tarde?

   O cavalo estava longe, sob as árvores do capão, e o postinho de saúde já devia estar fechando. Nesse ritmo, no mínimo perderia a perna esquerda, já arroxeada e coberta de bolhas. Se não conseguisse montar no baio, arriscava morrer ali mesmo.

   Imaginou que não teria um velório de aturdidas tristezas. Talvez sua morte até contribuísse para  apaziguar os ânimos da família, dando razão, por caminho inesperado, a uma das partes em confronto. A cunhada diria que havia sido um castigo de Deus e o irmão insinuaria, com maldade, que as cobras teriam morrido primeiro. Se a amiga Chininha despejasse alguma lágrima no enterro, suspeitas injustas se confirmariam para todo o sempre.

   À contraluz, a colina salpicada de pedras - cobertas pelo verde prateado dos liquens -, com nesgas de terra escura brotando dentre elas, parecia também o dorso de uma enorme jararacuçu. Aquela coxilha devia ser a mãe de todas as cobras.

   Sentia fisgadas da cintura para cima, calafrios. Ansiava por um gole d’água. Ouviu o relincho incomodado do baio e teve medo que o animal atado à cerca também estivesse ameaçado por serpentes. Reorientou o lento arrastar-se para os lados de onde ouvira a montaria. No céu, que já se apresentava mais anil, as primeiras estrelas tinham um brilho embaçado. Como se havia formado aquele nevoeiro num dia tão claro?

   Enxergou junto ao alambrado o vulto do cavalo, inquieto diante de sua aproximação de modo tão fora do comum. Falou com ele para acalmá-lo:

   - Eia, baio, eia.

   Tinha os braços cansados e as pernas anestesiadas. Não conseguiria montar. Ouviu mais forte o patear do garanhão. Assustado, ele se movia lateralmente de forma perigosa para quem pretendia abordá-lo arrastando-se.

   - Oooô, oô!

   Pensou que soltá-lo poderia ser o seu escape. O animal tomaria o rumo das casas e, chegando sem cavaleiro, tratariam de sair a procurá-lo. Movimentou-se em curva para contorná-lo e poder afrouxar as rédeas.

   Com esforço, pois sentia fortes dores no peito, sob as costelas, conseguiu desatar o nó que prendia o cavalo no palanque da cerca, a meia altura. Ainda teve forças para gritar com ele:

   - Xô, baio, xô!

   O bicho desandou a correr e o homem sentiu-se aliviado. Veio-lhe à boca um gosto adocicado de sangue. Ou, talvez, canela: um gosto de cuca de banana com crosta de canela. Da cintura para baixo, não sentia mais nada.

   Estava muito cansado. Os braços formigavam. Sorveu, esperançoso, a calmaria da noite. Não ouvia mais o trote fugidio do baio, talvez já estivesse bordejando o açude. Um boi mugiu ao longe. Perto, só escutava o cricrilar dos grilos. Pensou ouvir um som de sanfona, alinhavando uma melodia triste.

   Dominado pela exaustão, recostou-se no alambrado. Precisava descansar. Fizera esforço demais para subir a colina. Mordiscou uns talos de capim para aplacar a sede. Seria melhor que viessem buscá-lo de camionete. A dor no braço esquerdo estava cada vez mais forte e ele agora sentia frio.

   Repentinamente, viu o campo inundar-se de vagalumes, num bailado aleatório.

   O anoitecer no pampa sabia ser bonito.

   Pensou enxergar, lá no alto, o cruzeiro do sul. Depois, pouco a pouco, um véu foi cobrindo a luminosidade das estrelas, que boiavam como candeeiros de prata no azul profundo do infinito.


                                         - Miguel da Costa Franco -

(livremente inspirado no conto “À deriva”,   de Horácio Quiroga, do qual se surripiou as duas primeiras frases)

Um comentário:

  1. As botas!, o alerta do meu avô que ainda esfregava alho no couro. Tem sofrimento e tem a doçura de um final contemplando o campo celeste

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