A menina de shortinho
vermelho entrou ventando na barbearia do pai e desapareceu atrás da cortina
grená, que separava o salão de trabalho da área residencial. Deixou badalando por
uma eternidade os sininhos pendurados à porta para anunciar o entra e sai dos
fregueses.
O barbeiro Joaquim ficou olhando para os
vestígios da filha na cortina irrequieta. Sacudiu a cabeça, contrariado - essa
fedelha metida a gente grande andava se passando -, mas ficou calado.
O velhote, que havia assistido à cena através
dos espelhos, acomodado na cadeira reclinável, solidarizou-se com ele:
- Essa idade é fogo!
- Se ao menos ainda tivesse a Maria pra ajudar... – disse Joaquim, retomando o téc-téc da tesoura.
Mal tinham parado de soar os sete sinos da
felicidade, um homem de bengala os fez tilintar outra vez, agora com menos
truculência. Entrou no salão, e ficou junto à porta, indeciso.
- Tô terminando aqui. Não paga nada pra esperar sentado – disse o barbeiro, sem tirar os olhos dos cabelos brancos em que dava os últimos retoques.
O recém-chegado ocupou a cadeira mais próxima da
entrada e ficou aguardando a sua vez em silêncio, as mãos postas no colo, como
se rezasse.
Joaquim abandonou o pente e a tesoura sobre a
bancada, junto ao estojo das navalhas. Levou um espelho portátil para trás da
cadeira, de modo que o cliente pudesse avaliar por todos os ângulos o serviço
executado e, diante do semblante sereno e dos meneios favoráveis que recebeu em
troca, desatou o avental protetor do pescoço do homem, retirando-o com cuidado.
Sacudiu o pano ao lado da cadeira, deixando cair os cabelos cortados sobre o
piso mosqueado de granitina. Depois, trocou o espelho por uma escova, com a qual limpou a gola da camisa do freguês. Com uma sequência de
tapinhas sutis no ombro do velhote, deu por encerrado o seu trabalho.
Gostava desse ritual. Gostava de rituais.
Quando o outro vestia o paletó para sair, Joaquim
convidou o novo cliente – nunca o vira antes - a ocupar a cadeira onde se dedicava
a aparar cabeleiras e barbas há mais de trinta anos.
- Obrigado, mas não vim por isso – disse o moço.
- O que vai ser, então? – perguntou o barbeiro.
- Vim por causa de umas unhas compridas.
Joaquim percebeu que o sujeito mirava para os
espelhos sem um pingo de vaidade, como se avaliasse paredes nuas.
- De unhas, eu não trato – advertiu o barbeiro, para quem isso era serviço de mulher.
- Não vim fazer as unhas. Apenas segui até aqui uma pessoinha que foi gentil comigo lá na rua. Os sinos me ajudaram.
- Deve ter sido a minha filha, que entrou correndo ainda agorinha.
- Me arranhou por acidente e escapou assustada, sem ouvir meu obrigado – continuou o homem.
O barbeiro dirigiu-se até a porta que separava a
barbearia do interior da casa, afastou a cortina desbotada e gritou lá para
dentro, imperativo:
- Eulália... Eulália!
Uma menina magrela, com bem menos de um metro e
meio, surgiu envergonhada pela abertura, escondendo o corpo miúdo atrás das
grossas cortinas.
- O moço quer te agradecer uma gentileza – disse o barbeiro, apontando o visitante com o queixo.
- Isso – disse o sujeito, procurando dirigir a fala para os lados da menina. – Se não fosse você, estaria até agora tentando atravessar aquela rua.
Com a voz pausada, Joaquim não perdeu a
oportunidade:
- O que ele sabe de ti é que tu tens umas unhas bem, bem, bem compridas.
A menina enrubesceu e enroscou-se mais ainda na
cortina.
- Eu juro que ia cortar, pai. Juro.
O homem da bengala branca levantou-se, deu um
passo à frente e estendeu a mão para cumprimentá-la.
- Vamos, estica essa mão e cumprimenta o moço, Eulália. Não seja mal-educada.
A menina deu também um passo adiante, escondendo os
braços atrás do corpo. Depois, levou a mãozinha magra na direção do visitante, com
os dedos voltados para o interior da palma. O homem tomou-a com firmeza e sacudiu-a,
vigorosamente.
Por momentos, aos olhos desgostosos do pai, as
unhas enormes de Eulália, cobertas por um esmalte brilhante, pareceram ocupar
todo o salão da barbearia. Tinham o mesmo tom inconveniente do sangue fresco que,
às vezes, ele fazia brotar nos fregueses, quando as navalhas ficavam vacilantes
e sem fio.
Joaquim despejou sobre a filha um olhar severo e
acusador. Ela recuperou a posse da própria mão, que o outro insistia em
sacudir, e voltou a escondê-la atrás do minúsculo short vermelho.
- Muito obrigado, você foi muito gentil – disse o visitante. – É difícil hoje em dia encontrar alguém que seja assim, atenciosa com desconhecidos.
Voltando a cabeça em direção a Joaquim,
completou seu breve discurso:
- Mais raro ainda é encontrar uma jovenzinha que não se importe somente com futilidades e aparências.
O barbeiro corou. Virou-se
para o lado, saindo da mira dos olhos baços do cego, como se ele pudesse
enxergar seu desconforto.
- Me vou, então. Parabéns pela filha que o senhor tem.
O homem voltou-se para a porta, tateando ao
encontro do trinco, e despediu-se.
- Bom dia para vocês.
- Passe bem – disse o barbeiro. – Muito obrigado.
O cego saiu, agitando sua bengala para lá e para
cá.
Nem bem a porta se fechou, a menina fez menção
de escafeder-se para dentro de casa outra vez, mas o barbeiro a reteve, com sua
voz grave de locutor:
- Não terminamos ainda, Eulália!
A menina voltou-se para ele, cabisbaixa. Pressentia
um prolongado sermão.
O barbeiro foi até a bancada, abriu a gavetinha
de baixo - seu cofrinho particular -, tirou de lá umas notas e alcançou-as para
a filha.
- Toma, vê se compra alguns esmaltes.
Depois, pegou a vassoura e começou a varrer a
cabelama acumulada sobre o piso de granitina. Pelo espelho, ficou espiando,
apaziguado, o misto de espanto e satisfação que se abriu no rosto da guria.
(dedicado à pequena Laura)
- Miguel da Costa Franco -
(dedicado à pequena Laura)
- Miguel da Costa Franco -
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