quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Unhas compridas



   A menina de shortinho vermelho entrou ventando na barbearia do pai e desapareceu atrás da cortina grená, que separava o salão de trabalho da área residencial. Deixou badalando por uma eternidade os sininhos pendurados à porta para anunciar o entra e sai dos fregueses.

   O barbeiro Joaquim ficou olhando para os vestígios da filha na cortina irrequieta. Sacudiu a cabeça, contrariado - essa fedelha metida a gente grande andava se passando -, mas ficou calado.

   O velhote, que havia assistido à cena através dos espelhos, acomodado na cadeira reclinável, solidarizou-se com ele:
     
   - Essa idade é fogo!
   
   - Se ao menos ainda tivesse a Maria pra ajudar... – disse Joaquim, retomando o téc-téc da tesoura.

   Mal tinham parado de soar os sete sinos da felicidade, um homem de bengala os fez tilintar outra vez, agora com menos truculência. Entrou no salão, e ficou junto à porta, indeciso.
   
   - Tô terminando aqui. Não paga nada pra esperar sentado – disse o barbeiro, sem tirar os olhos dos cabelos brancos em que dava os últimos retoques.

   O recém-chegado ocupou a cadeira mais próxima da entrada e ficou aguardando a sua vez em silêncio, as mãos postas no colo, como se rezasse.

   Joaquim abandonou o pente e a tesoura sobre a bancada, junto ao estojo das navalhas. Levou um espelho portátil para trás da cadeira, de modo que o cliente pudesse avaliar por todos os ângulos o serviço executado e, diante do semblante sereno e dos meneios favoráveis que recebeu em troca, desatou o avental protetor do pescoço do homem, retirando-o com cuidado. Sacudiu o pano ao lado da cadeira, deixando cair os cabelos cortados sobre o piso mosqueado de granitina. Depois, trocou o espelho por uma escova, com a qual limpou a gola da camisa do freguês. Com uma sequência de tapinhas sutis no ombro do velhote, deu por encerrado o seu trabalho.

   Gostava desse ritual. Gostava de rituais.

   Quando o outro vestia o paletó para sair, Joaquim convidou o novo cliente – nunca o vira antes - a ocupar a cadeira onde se dedicava a aparar cabeleiras e barbas há mais de trinta anos.
   
   - Obrigado, mas não vim por isso – disse o moço.
  
   - O que vai ser, então? – perguntou o barbeiro.

   - Vim por causa de umas unhas compridas.

   Joaquim percebeu que o sujeito mirava para os espelhos sem um pingo de vaidade, como se avaliasse paredes nuas. 

   - De unhas, eu não trato – advertiu o barbeiro, para quem isso era serviço de mulher.

   - Não vim fazer as unhas. Apenas segui até aqui uma pessoinha que foi gentil comigo lá na rua. Os sinos me ajudaram.

   - Deve ter sido a minha filha, que entrou correndo ainda agorinha.

   - Me arranhou por acidente e escapou assustada, sem ouvir meu obrigado – continuou o homem.

   O barbeiro dirigiu-se até a porta que separava a barbearia do interior da casa, afastou a cortina desbotada e gritou lá para dentro, imperativo:

   - Eulália... Eulália!

   Uma menina magrela, com bem menos de um metro e meio, surgiu envergonhada pela abertura, escondendo o corpo miúdo atrás das grossas cortinas.

   - O moço quer te agradecer uma gentileza – disse o barbeiro, apontando o visitante com o queixo.

   - Isso – disse o sujeito, procurando dirigir a fala para os lados da menina. – Se não fosse você, estaria até agora tentando atravessar aquela rua.

   Com a voz pausada, Joaquim não perdeu a oportunidade:

   - O que ele sabe de ti é que tu tens umas unhas bem, bem, bem compridas.

   A menina enrubesceu e enroscou-se mais ainda na cortina.

   - Eu juro que ia cortar, pai. Juro.

   O homem da bengala branca levantou-se, deu um passo à frente e estendeu a mão para cumprimentá-la.

   - Vamos, estica essa mão e cumprimenta o moço, Eulália. Não seja mal-educada.

  A menina deu também um passo adiante, escondendo os braços atrás do corpo. Depois, levou a mãozinha magra na direção do visitante, com os dedos voltados para o interior da palma. O homem tomou-a com firmeza e sacudiu-a, vigorosamente.

   Por momentos, aos olhos desgostosos do pai, as unhas enormes de Eulália, cobertas por um esmalte brilhante, pareceram ocupar todo o salão da barbearia. Tinham o mesmo tom inconveniente do sangue fresco que, às vezes, ele fazia brotar nos fregueses, quando as navalhas ficavam vacilantes e sem fio.

   Joaquim despejou sobre a filha um olhar severo e acusador. Ela recuperou a posse da própria mão, que o outro insistia em sacudir, e voltou a escondê-la atrás do minúsculo short vermelho.

   - Muito obrigado, você foi muito gentil – disse o visitante. – É difícil hoje em dia encontrar alguém que seja assim, atenciosa com desconhecidos.

   Voltando a cabeça em direção a Joaquim, completou seu breve discurso:

   - Mais raro ainda é encontrar uma jovenzinha que não se importe somente com futilidades e aparências.

   O barbeiro corou. Virou-se para o lado, saindo da mira dos olhos baços do cego, como se ele pudesse enxergar seu desconforto.

   - Me vou, então. Parabéns pela filha que o senhor tem.

   O homem voltou-se para a porta, tateando ao encontro do trinco, e despediu-se.

   - Bom dia para vocês.

   - Passe bem – disse o barbeiro. – Muito obrigado.

   O cego saiu, agitando sua bengala para lá e para cá.

   Nem bem a porta se fechou, a menina fez menção de escafeder-se para dentro de casa outra vez, mas o barbeiro a reteve, com sua voz grave de locutor:

   - Não terminamos ainda, Eulália!

 A menina voltou-se para ele, cabisbaixa. Pressentia um prolongado sermão.
  
   O barbeiro foi até a bancada,  abriu a gavetinha de baixo - seu cofrinho particular -, tirou de lá umas notas e alcançou-as para a filha.

   - Toma, vê se compra alguns esmaltes.

   Depois, pegou a vassoura e começou a varrer a cabelama acumulada sobre o piso de granitina. Pelo espelho, ficou espiando, apaziguado, o misto de espanto e satisfação que se abriu no rosto da guria.

                                                                   (dedicado à pequena Laura)

                                                                    - Miguel da Costa Franco -

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