quarta-feira, 2 de maio de 2018

Hora do "cafessinho"




Eu estava com as pernas doendo. Já tinha perdido a conta de quantas vezes    havia passado café desde o início daquela muvuca. Na verdade, a gente nem estava preparado para aquilo, eu precisei pedir ao secretário um reforço de grana para comprar mais pó.

O entra e sai na diretoria continuava intenso, nunca tinha visto tanto figurão: senador, deputado, vereador, gente importante da cidade, dos partidos e dos sindicatos. Muitos que eu conhecia só da tevê. Mas também havia um monte de gente do povo querendo dar um abraço, uma palavra de apoio, agradecer, avisar que tava junto.

A família dele também não arredava o pé. A menina era a mais abatida, nem parecia ter enfrentado, de verdade, o que passou lá atrás: disputas, abandono. Também pode ser que aquilo tenha sido só falação da imprensa. Contra o homem, sempre foi um vale-tudo.

Volta e meia, uma cara assomava à porta da cozinha e pedia:

- Mais café, Jorginho.

Não mudava nada para mim, as coisas funcionavam sem parar no meu cantinho, no automático. A água aquecendo, o pó esperando, as xícaras limpas de molho, outras tantas empilhadas na pia para lavar. Menos mal que haviam comprado algumas xicrinhas descartáveis. Num dia desses, foda-se a ecologia.

Lá fora, a cantoria não parava. Dava para ver pela janelinha basculante a rua lotada de gente e as pessoas se revezando no palco, prometendo luta, união, resistência, vingança.

Que dó!

Eu havia começado a trabalhar no sindicato pouco antes da greve de 79, quando o Barba surgiu para o mundo dos jornais e da tevê, falando grosso no estádio da Vila Euclides. Para nós, do sindicato, ele já era o tal.

No meio da tarde - talvez pensando nesses anos todos -, ele havia perguntado, depois de elogiar com a língua batendo nos dentes o meu cafessinho:

- Não se aposentou ainda, homem?

- Fazer o quê em casa? - eu disse.

Não queria ofender o amigo. Como é que eu iria dizer, naquela situação, na frente de tanta gente graúda, que pobre ainda não pode se aposentar. Podia parecer desfeita, tanta coisa ele fez por nós. Então, apenas brinquei:

- Só vou me aposentar quando você aprender a dizer cafezinho, Barba.

Ele riu com gosto, como todos os que estavam por perto e ouviram o meu chiste. Até os advogados, sempre tão sisudos, empertigados, gola abotoada, sapato brilhando. Todos ali estavam à vontade, mangas de camisa, gravatas frouxas, paletós no encosto das cadeiras. Eles, não. Duros, firmes, cara grave de quem espera sua hora para dar conselhos.

- Esse Jorginho é uma peça – ele disse, forçando ainda mais o chiado costumeiro (era bom de aceitar as brincadeiras).

Levantou-se da poltrona na ponta da mesa e me deu um abraço apertado, de amigo. Mais: de compadre. Lembrei dele no batizado da Marcinha, as calças de bainha meio curta, a barriga escapando do botão da camisa social, tossindo muito, engasgado com uma empada que ele tinha enfiado inteirinha na boca.

- Marcinha mandou dizer que, precisando dela, é só chamar. A qualquer hora, ela larga o serviço e vai. Em Curitiba, ou qualquer lugar. Ela te deve tudo o que conquistou na vida.

- Obrigado, querido, diz pra ela isso, viu? Diz pra doutora que, se as juntas enferrujarem muito, eu chamo, mesmo.

- Vai se entregar pros homens? – arrisquei.

- Agora vai ter de ser, mas vou fazer do meu jeito. Eles querem ganhar no tapetão, mas ainda tem muito jogo.

Larguei a bandeja e peguei da minha carteira a foto da Marcinha no dia da formatura em Santo André.

- Toma, leva contigo para se lembrar da oferta dela.

O olho dele brilhou. Pegou a foto com a mão boa e elogiou a lindeza de Marcinha. Guardou-a no bolso da camisa e me deu um beijo babado na bochecha. Ficou batendo a mão no peito, pertinho do coração, onde enfiara a foto, emocionado.

A menina loira, alterada, disse bem alto que ele devia, sim, fazer o discurso às cinco horas para afrontar o cara. O senador mocinho apoiou, o advogado de óculos sacudiu a cabeça, irritado. Um turbilhão de vozes inflamou a sala outra vez. O Barba sentou de novo no seu cadeirão e ficou só ouvindo, passando a mão no queixo, tranquilo. Sempre gostou dessa vida agitada, dessa fuzarca de gente batendo boca.

Eu voltei a recolher as xícaras sujas, até encher a minha bandeja, e saí de mansinho, como havia entrado. Precisava me sentar um pouco. Eles lá que se entendam. O que o Barba decidir fazer, eu vou apoiar.


                                                                         - Miguel da Costa Franco -

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